O luto e as crianças: saiba como guiá-las neste processo

shutterstock_337104815

É um tema delicado e que ainda suscita muitas dúvidas aos pais. O luto vivido na pele de uma criança pode ser verdadeiramente assustador para a própria, mas também para os adultos quando estes não se sentem emocionalmente seguros nem dispõem de ferramentas para a ajudar a ultrapassar esta fase tão complicada.

A dúvida paira normalmente entre contar a verdade (e se sim, de que forma), e omitir o conceito da morte, para poupar a criança à dor da perda. Afinal, como devemos proceder junto dos mais pequenos perante a tragédia da morte para minimizar o sofrimento e eventuais traumas?

Verónica Afonso, psicóloga clínica, considera que a dificuldade dos pais em explicar aos filhos o conceito da morte reside fundamentalmente na sua própria relutância e consequente falta de preparação em lidar com a mesma.

“A sociedade ocidental fez um longo percurso e reflexão acerca do nascimento, na preparação para o início da vida. Os pais ensaiam como responderão aos filhos quando estes perguntarem de onde vêm os bebés; o sistema educativo e a saúde escolar abordam este tema desde cedo; há cursos de preparação para o parto e parentalidade; inúmeros blogues, grupos de partilha de experiências… Mas nenhum aborda outra fase, tão significativa como a primeira: o final da nossa vida. Ora, como preparar as crianças para viver algo para o qual os próprios adultos não estão preparados nem resolvidos?!”

Segundo a especialista, independentemente da idade da criança e do seu nível de desenvolvimento, é inegável que sofrerá sempre com a perda, já que a morte ativa angústias primárias que a criança poderia já ter resolvido, como a do abandono ou o confronto com a sua própria incompletude, e o medo de poder desaparecer.

“Até aos 3 anos os bebés sentem a perda no sentido da ausência temporária no mundo imediato, não havendo distinção entre esta e morte. Já em idade pré-escolar, as crianças compreendem a morte como algo que provoca grande tristeza porque captam a emocionalidade nos adultos, mas ainda não têm capacidade de perceber que é algo irreversível e que a pessoa falecida não irá mais voltar. Este nível de compreensão, aliado ao pensamento mágico característico desta idade, faz com que surjam fantasias de voltar a estar com a pessoa falecida, o que deixa os pais apreensivos, receando que a criança não esteja a conseguir lidar com a morte. Atualmente, contribuem para esta dificuldade o facto de nos desenhos animados e nos jogos de computador as personagens morrerem e voltarem à vida logo a seguir”, explica Verónica Afonso. “A criança só concebe a morte como algo irreversível pelos 7 anos, começando a colocar questões acerca do destino da pessoa que faleceu, e só entre os 9 e os 10 anos se interioriza a morte como um fenómeno universal, irreversível e comum a todos os seres vivos.”

Como contar?
A especialista frisa, antes de mais, que sempre que possível, a notícia da morte deve ser dada pelo cuidador da criança (pai e/ou mãe) ou, nesta impossibilidade, por um adulto muito próximo, e não por um profissional de saúde que, apesar de toda a bagagem técnica, não será uma pessoa securizante para a criança. A comunicação deve ser clara e adequada à idade da criança, bem como às caraterísticas da sua personalidade.

“É importante usar uma linguagem muito concreta. O ideal é fazer a ligação com o ciclo natural da vida, como o nascimento de uma planta, o seu desenvolvimento e, finalmente, a morte.”

Salienta também que, antes de tentar conversar com a criança, é de extrema importância que os adultos reflitam sobre a morte. “Só poderemos preparar os outros se nós próprios tivermos estas questões trabalhadas em nós. Isto não significa que tenhamos todas as respostas, podemos mesmo partilhar com as crianças mais velhas as nossas dúvidas. É também importante fazer a ligação com a vivência emocional da morte, sem esconder a tristeza dos adultos, caso estes estejam a viver um processo de luto.”

Em suma, Verónica Afonso considera que “a explicação do conceito de morte deve acontecer de forma gradual e seguindo as perguntas que a criança for colocando, porque isto demonstra que já está preparada para receber essa informação. Deve ainda responder a três pontos: a universalidade – tudo que é vivo um dia vai morrer –, a irreversibilidade – quando morre, não há possibilidade de voltar à vida – e a não-funcionalidade – depois de morto, o ser já não corre, não dorme, não pensa…”

Acima de tudo, Verónica Afonso relata que há um consenso entre especialistas no que toca à honestidade. “Usar metáforas como «a pessoa foi dormir» ou «fazer uma longa viagem» é contraproducente, porque as crianças funcionam de um modo concreto e vão interpretar esta explicação no seu sentido literal. Podem desenvolver o medo de dormir e não voltar a acordar, ou acreditar que, se a pessoa dormiu, a qualquer momento pode voltar a acordar. Podem ainda recear que as pessoas que viajam possam nunca mais voltar, o que envolve sentimentos de abandono, como «preferiu viajar a ficar comigo, não gosta de mim», ou empenhar-se em pensar numa maneira de chegar à estrelinha no céu que o adulto lhe disse ser a pessoa falecida.”


Leia também O seu filho está a ser vítima de violência?


Manter a criança informada sobre uma eventual doença grave de um ente próximo irá ajudar a prepará-la para o pior cenário. “Se se tratar de uma doença prolongada, é importante que a criança vá estando a par, dentro do adequado para a sua idade, do agravamento da situação clínica, explicando que a pessoa está muito doente, mais frágil e poderá morrer. Assim é possível ir preparando a criança para o desfecho e damos espaço para que vá elaborando o conceito de morte. Se for uma morte inesperada deveremos ser o mais sinceros e diretos possível, permitindo que ela coloque todas as questões e acompanhe os adultos, respeitando sempre a sua vontade. Vai ser mais fácil ajudar a criança se a expressão do adulto for coerente com a sua experiência emocional.” Verónica Afonso desaconselha, no entanto, manifestações de dor mais extremas e dramáticas, que podem assustar a criança.

Omitir é opção?
A especialista considera que, ao não compreender o que os adultos lhe escondem, “a criança «compensa» a falta de informação com uma perceção emocional muito desenvolvida, captando a vivência de luto dos que a rodeiam. Naturalmente, irá fantasiar de forma a dar sentido à emocionalidade que observa, construindo cenários muitas vezes mais dramáticos que a realidade. Poderá pensar «O que aconteceu é tão terrível, que os adultos não se atrevem a falar nisso, deve ser monstruoso…». Quando os pais dão informação à criança, estão também a dar resposta à sua necessidade de pertença e segurança. Na vivência da morte a insegurança é um sentimento dominante nas crianças, daí ser tão importante que estas possam confiar nos pais. A omissão/dissimulação ou mentira constitui uma ameaça grave à segurança que as crianças precisam perceber naqueles que lhes são mais próximos.”

No caso da morte de um ente querido, Verónica Afonso considera que a criança deve ser consultada sobre a sua vontade em estar presente no funeral. “Os rituais de despedida são necessários e organizadores da nossa experiência emocional, daí a sua importância, seja qual for a idade. Não há evidência científica que a participação das crianças em velórios ou funerais possa traumatizá-las, contudo, devemos ter alguns cuidados. Em primeiro lugar, devemos explicar bem à criança o que irá acontecer nesse ritual de despedida, como é que as pessoas se poderão comportar e por que motivo. Com esta informação, a própria criança deverá decidir se se sente preparada pera viver esta experiência, ou se prefere não participar.”

O que esperar de uma criança em luto?
Será normal que demonstre determinados comportamentos como reação à perda, sendo “uma maior dependência dos pais, ansiedade na separação, alterações na alimentação, sono ou controlo de esfíncteres” os mais comuns. São ainda compreensíveis alterações emocionais, como mudanças bruscas de humor, tristeza e choro fácil, medos, irritabilidade ou desinteresse pelas brincadeiras. “Todos estes sinais poderão ser considerados esperados e adaptativos num processo de luto normal, desde que contidos no tempo e manifestados com intensidade leve a moderada. No entanto, em casos pouco frequentes, as crianças poderão demonstrar sinais de luto patológico para os quais os adultos deverão estar atentos, como sejam o isolamento, retrocessos no desenvolvimento e infantilização, desinteresse marcado por atividades, sintomas psicossomáticos, como dores abdominais e cefaleias, insónia e pesadelos, perda de apetite ou medo de ficar só (angústia de separação), baixa muito expressiva no rendimento escolar e crises de pânico e ansiedade.”

A psicóloga clínica assegura que não há um tempo definido de resolução do luto, já que depende da combinação de vários fatores (relação da criança com a pessoa falecida, a fase de desenvolvimento em que se encontra, o tipo de morte, entre outros). “De uma forma muito geral, e sem consensos na área, poderemos considerar como motivo de preocupação para o eventual desenvolvimento de um luto complicado ou patológico quando, após 6 meses, ainda estão presentes sintomas de luto perturbadores.”

Como ajudá-la a superar?
Cabe ao adulto guiar a criança neste processo, tentando minimizar o seu sofrimento. “A melhor forma de ajudar será oferecer-se como modelo, deixando a criança perceber como lida com a dor da perda e com as saudades da pessoa falecida. Incentive a criança a expressar verbalmente o que está a sentir, através do desenho ou cartas de despedida, e mostre-lhe como é natural, nesta fase, experimentar sentimentos tão difíceis como a tristeza ou a raiva. É também importante não excluir a criança de conversas sobre os sentimentos de perda ou sobre a pessoa falecida”, declara Verónica Afonso. E acrescenta: “Uma das preocupações mais significativas para as crianças na vivência do luto é assegurar a continuidade dos cuidados («Eu algum dia vou ficar sozinho?; Quem vai tomar conta de mim?»). Falar na rede familiar (pais, avós, tios, irmãos, padrinhos e amigos próximos), garantindo que muitas pessoas gostam dela e sempre estarão presentes, ajuda a criança a sentir-se segura e a resolver melhor o conceito de morte.” Outro aspeto fundamental é manter viva a memória dos que já partiram. “As crianças, principalmente as mais novas, lutam contra o receio de se esquecerem da pessoa que faleceu. Ajude a criança a manter viva a memória através dos álbuns de fotos ou histórias que envolvam o falecido.”

Leitura recomendada:
‘Um Avô Inesquecível’, de Bette Westera, Livros Horizonte, €10,68.