Testemunho: “Não ignoro a hemofilia, mas também não a sobrevalorizo”

Ana Pastor_Foto_2018

Silenciosa, mais ou menos camuflada, a hemofilia nem sempre foi uma realidade consciente da vida de Ana Pastor. Aprendeu a viver com diferenças, mas nem sempre soube porque tal lhe acontecia.

Já mais tarde, escolheu ser mãe e encontrar o caminho para que ela e os filhos pudessem caminhar, com algumas especificidades, mas com a liberdade de quem opta por não sucumbir às fragilidades.

No dia Mundial da Hemofilia, que se assinala esta terça-feira, 17 de abril, o Delas.pt recolheu testemunhos de mulheres que aprenderam a viver com a patologia e a tomar decisões duras e não menos angustiantes a que a Hemofilia obriga.

Leia o testemunho na íntegra e na primeira pessoa abaixo:

“Ana Pastor. 42 anos. Portadora do gene da Hemofilia A (défice do factor VIII da coagulação). Como todas as portadoras, nasci com o gene que carrega a informação para a hemofilia. Como a grande maioria das mulheres que não apresenta histórico familiar da doença, cresci sem sequer desconfiar do facto.

Durante a minha infância e adolescência houve vários sinais da possível existência de um distúrbio hemorrágico: nódoas negras frequentes e prolongadas, sangramento recorrente pelo nariz, período menstrual prolongado (superior a sete dias), que, no entanto, não foram o suficientes para alertar os médicos.

Já com 20 anos, na sequência de uma hemorragia gengival decorrente de uma higienização oral, fui diagnosticada como sendo portadora do défice de FVIII, mas então, sem consciência das implicações associadas à patologia, desvalorizei o facto. A minha mãe foi quem valorizou o diagnóstico e “me empurrou” para uma consulta de Hematologia, e depois, para o acompanhamento em consulta de imunohemoterapia.

Com o avançar da idade foram surgindo as primeiras sequelas articulares: um joelho que, de forma intermitente, me condiciona os movimentos, mas em contrapartida me avisa sempre quando vai chover!

A consciencialização veio muito lentamente, até à altura em que pensei engravidar… agora já não era só eu… seria também a saúde do meu filho! Fiz então, com o meu marido, consulta de aconselhamento genético, e descobrimos que havia 50% de hipóteses de virmos a ter um bebé hemofílico (se rapaz) ou portador (se menina). Arriscámos numa gravidez natural, muito desejada, e profundamente esperançados nos outros 50% de hipóteses que queríamos pudessem ser realidade.

“A consciencialização veio muito lentamente, até à altura em que pensei engravidar… agora já não era só eu… seria também a saúde do meu filho!”

A gravidez, de risco em virtude do meu estatuto de portadora, e o parto, para o qual tive que receber tratamento profilático, foram sempre acompanhados em estreita articulação entre a obstetra e a minha hematologista, tendo resultado no nascimento de um menino lindo e perfeito! Tão perfeitamente igual a mim que herdou os meus défices…

“O seu filho é hemofílico!” – Fiquei sem chão, sem saber como agir perante o peso de uma responsabilidade enorme… Imediatamente, surgiu a sobreproteção ao meu filho e o descuidar da minha própria condição. Mais uma vez a minha mãe veio em meu auxílio: “Se queres cuidar bem do teu filho, tens que começar por cuidar bem de ti!”. Este foi o momento derradeiro da minha consciencialização.

“O seu filho é hemofílico!” – Fiquei sem chão, sem saber como agir perante o peso de uma responsabilidade enorme… Imediatamente, surgiu a sobreproteção”

Procurei saber mais sobre a Hemofilia e o estatuto de portadora, e descobri a Associação Portuguesa de Hemofilia e outras Coagulopatias Congénitas (APH), que, juntamente com a minha hematologista e com as do meu filho, também ele acompanhado em consulta de Imunohemoterapia, têm sido um suporte essencial para os desafios específicos que se colocam no nosso dia a dia: entrar na escola, onde têm que saber o que fazer quando há hemorragia, escolher uma atividade desportiva na qual sejam minimizados os riscos de traumatismo, fazer um passeio ou férias longe do centro de tratamento, etc.

Hoje, já depois de ter tido outro filho, um menino igualmente lindo e perfeito, mas não tão perfeitamente igual a mim (os outros 50% de probabilidades concretizaram-se), e sem a carga de desconhecimento que inicialmente me turvava a razão, perspetivo um futuro auspicioso para mim e para os meus filhos, no qual a hemofilia não é incapacitante de uma vida plena e feliz.

“Não ignoro, nem menosprezo a hemofilia (é uma condição grave!), mas também não a sobrevalorizo, não deixo que domine a minha vida”

Não ignoro, nem menosprezo a hemofilia (é uma condição grave!), mas também não a sobrevalorizo, não deixo que domine a minha vida. A receita para o conseguir é simples: Informação e Amor!”

Texto editado por CB

Imagem de destaque: DR

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