O que oferecer às crianças? Cuidado com os preconceitos de género

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Bonecas, tachos, automóveis ou caixas de ferramentas? Em que medida as prendas alimentam preconceitos sexistas e que consequências podem ter para a vida? Perguntámos a especialistas qual é o efeito da reprodução dos papéis de género cada vez que oferecemos uma casinha a uma rapariga e uma bola de futebol. As respostas são esclarecedoras.

“O universo dos brinquedos está impecavelmente segmentado. (…) Sim, vão dizer-me que a maioria das meninas adoram o rosa e os rapazes apreciam rebolar-se na lama (…). É lógico, com toda a energia dispensada a fazê-los compreender que é disso que devem gostar.” A afirmação é de Clarence Edgard-Rosa, em Les Gros Mots, Abécédaire Joyeusement Moderne du Féminisme, um livro lançado em França em novembro e que, como o nome sugere, tenta clarificar, muitas vezes com um toque de ironia, “palavrões” associados ao feminismo.

Dois mundos separados por uma “fronteira opaca” é o que se encontra nos catálogos de brinquedos, refere a autora. E, de facto, basta espreitar um folheto de uma qualquer rede de supermercados nacional para o confirmar: duas páginas assinaladas a rosa com oferta para meninas incluem bonecas, bebés e respetivos acessórios para os primeiros cuidados, um ‘set bandeja chá/escorredor loiça/limpeza’ e kits de cosmética. Na dupla seguinte, assinalada a azul, aos meninos estão reservados muitos automóveis e motos, uma garagem, mala e mesa de ferramentas e ‘blocos de construção esquadra de polícia/quartel de bombeiros/corridas Fórmula 1’. Nos corredores dos hipermercados encontramos, normalmente, a mesma arrumação. Será esta fronteira colorida inocente?

De inocente não tem nada, garante Clarence Edgard-Rosa: “A segmentação dos brinquedos por género é, sem dúvida, o conceito de marketing mais lucrativo de todos os tempos”. Ao comercializar-se uma bicicleta azul com o Super-Homem e outra igualzinha, em rosa, com a imagem da Barbie, apenas se duplica a necessidade de compra – isto, claro, porque muitos pais preferem investir numa bicicleta nova a que o benjamim da família herde a da irmã mais velha.

Tal estratégia estende-se ao consumo dos adultos, com produtos basicamente iguais, desde escovas de dentes a GPS, a serem comercializados em versões para homens e outras “exclusivas” para mulheres, sendo que as femininas são muitas vezes mais caras, originando um ‘fenómeno’ conhecido como “taxa rosa”, outro tópico abordado no ‘Abecedário dos Palavrões do Feminismo’.

Curiosamente, nem mesmo a cor associada a cada sexo tem qualquer razão de ser. Durante séculos as crianças foram vestidas de branco e posteriormente a regra até chegou a ser a inversa, com os meninos a envergar rosa, considerado “mais decidido e forte”, revela a historiadora Jo B. Paoletti no seu livro Pink and Blue: Telling the Girls From the Boys in América (Rosa e Azul: Distinguir as Raparigas dos Rapazes na América). As cores atuais, rosa para rapariga e azul para rapaz, remontam apenas à década de 40.

Cores à parte, podem os brinquedos que oferecemos às crianças ter um papel determinante no seu futuro? Dame Athene Donald, professora de Física Experimental na Universidade de Cambridge, acredita que sim. No seu primeiro discurso como presidente da British Science Association, há um ano, não hesitou em afirmar que os oferecidos às meninas as afastam da ciência e da engenharia: “Normalmente instigam à passividade, penteando o cabelo da Barbie, por exemplo, e não a construir, imaginar ou ser criativo”.

Na verdade, até já existe uma Barbie cientista. Embora não esteja à venda em Portugal, há as de outras profissões como bombeira e agente secreta, piloto de aviões ou programadora de jogos. Mesmo o seu corpo, tão “perfeito” quanto criticado, tem desde março características diferentes, podendo ser alto, baixo ou mais cheiinho, e a boneca perdeu a palidez, sendo atualmente produzida com sete tons de pele.

Que presentes oferecer?

A escolha pode ser muito mais simples do que parece: “As crianças sabem bem do que gostam, é apenas preciso saber escutar” diz a psicóloga clínica Paula Peres Di Salvatore. “Oferecer presentes dentro do que é suposto para cada género ou condicionar a escolha porque esta, supostamente, reforçará o estigma de género, parecem-me ambas perspetivas redutoras da pessoa enquanto humano”.

Sendo um facto que os homens normalmente têm mais força física do que as mulheres e que estas poderão ter maior espírito de sacrifício, como maioritariamente ditam as regras sociais vigentes, trata-se de características “ligadas às funções essenciais que o masculino e o feminino desempenharam para a proteção da espécie”. Acontece que “hoje os homens já não caçam bisontes e as mulheres assumem os postos que quiserem, ainda que, em muitos casos, com uma discriminação negativa de género”, explica a psicóloga.

Ou seja, a segmentação por género presente nos catálogos de brinquedos não tem razão de ser. “Cada criança deve poder optar pelo que gosta mais e ainda bem que, cada vez mais, homens percebem as enigmáticas máquinas de roupa e que as mulheres são cientistas! Há que educar ambos os géneros num ambiente seguro onde possam escolher em liberdade aquilo que verdadeiramente são no seu interior”.

Oferecer uma boneca a uma menina que a deseja é, portanto, a atitude mais adequada, segundo a especialista, até porque “brincar é também ser criativo, mudar a realidade, identificar-se ou não com alguns padrões propostos. Também se aprende do que não se gosta e, se calhar, no próximo Natal a menina vai pedir uma caixa de ferramentas e vai gostar!”

No fundo, negativa pode ser a apreciação dos adultos quanto aos gostos da criança. “O primeiro mundo de uma criança é o da família nuclear. Desiludir os pais é como carregar uma culpa que não se sabe porquê. Importante não é apenas o que uma criança faz mas é o que o mundo à sua volta, em particular os progenitores, fazem à criança, se a deixam existir livremente ou não. O segredo de tudo está numa boa comunicação para que ela se desenvolva e cresça de acordo com a sua verdadeira personalidade”.

Subjacente à reação parental está, muitas vezes, a questão da orientação sexual, como se as preferências por alguns brinquedos pudessem funcionar como indício de homossexualidade, indesejada no contexto familiar. “Os brinquedos não são nenhum indicador exato de nada, a não ser de que a criança ainda está a explorar-se a si e ao mundo que a rodeia, não constituem nenhuma predição futura”. E, acrescenta a psicóloga, “quem diz que ser heterossexual traz mais felicidade? Os divórcios em Portugal atingem quase metade dos casamentos…”.