Sabia que o seu cérebro “inventa” coisas?

A sua memória inventa coisas que não aconteceram
A sua memória inventa coisas que não aconteceram

Algures na nossa memória estão recordações de coisas que nunca aconteceram. Ou porque percebemos mal ou porque fomos influenciados ou simplesmente porque já lhes acedemos tantas vezes que, literalmente, adulterámos as lembranças com o uso. Bem-vindo ao maravilhoso mundo do seu cérebro – que “inventa” coisas que nunca aconteceram.

Colamos post its em locais estratégicos, fazemos listas de assuntos a tratar, pomos lembretes no telemóvel, preenchemos a agenda. A nossa relação com a memória é pautada pelo receio de esquecer. Entretanto, a memória atraiçoa-nos de forma diferente e inesperada: só vemos o medo de não recordar, mas o perigo de lembrar demasiado também existe. Sim, fabricamos memórias. É fácil criá-las e fazemo-lo sem nos darmos conta disso.

A memória não funciona como um gravador, mas antes como uma página da wikipédia: podemos ir lá mudar informações.

A psicóloga e especialista em memória Elizabeth Loftus usa uma analogia curiosa para explicar por que são fabricadas memórias falsas: ao contrário do que pensamos, a memória não funciona como um gravador, mas antes como uma página da wikipédia. Ou seja, podemos ir lá e mudar informações, assim como outras pessoas também podem. Por isso não é infalível.

Discussões por falsas memórias
Se já achou que alguém lhe mentiu descaradamente ou teve arrufos com amigos por mais ninguém se lembrar de algo que descrevia, saiba que, tanto num caso como noutro, a responsabilidade pode ser das falsas memórias. “No dia-a-dia, se as pessoas soubessem da existência das falsas memórias evitariam atritos e discussões umas com as outras”, diz a psicóloga clínica e neuropsicóloga Patrícia Moreira. “Mesmo quem tem uma boa memória e confia nas suas lembranças, tem de ter em atenção os complexos mecanismos que as elaboram.”

A memória implícita (ou procedimental) não depende da consciência. É automática. É ela que nos permite aprendizagens como andar de bicicleta e quase tudo o que fazemos em modo de piloto-automático, sem ter de pensar sobre isso. Forma-se através da repetição. “Estas memórias são fidedignas e praticamente imutáveis”, diz a psiquiatra Ana Sofia Nava. “Como os cheiros da infância, que nunca desaparecem.”

Depois – e é aqui que quase todos os problemas de memória, por excesso ou por defeito, residem – temos a memória explícita ou declarativa, mais intelectual, que codifica factos e acontecimentos autobiográficos, e que usamos para aprender novas tarefas e relatar acontecimentos antigos. “A sua formação depende de processos cognitivos como a avaliação, a comparação e a inferência. Mas esta memória é pouco fidedigna”, diz a psiquiatra e autora do livro ‘O Cérebro Apanhado em Flagrante’.

Para otimizar o volume de trabalho, o cérebro utiliza vários processos que retiram a fidelidade do que é memorizado. “Por exemplo, condensamos informações, associamos informações parecidas, selecionamos as mais importantes. De outro modo não poderíamos memorizar toda a informação que nos chega.” Como se isto não bastasse, têm de se somar fatores que interferem no processo de memorização: os órgãos dos sentidos, através dos quais nos chega a informação; a capacidade que o cérebro tem de integrar, o que quer dizer que a inteligência afeta as memórias; as emoções, que condicionam a capacidade de memorizar, e os mecanismos de defesa, que atuam nas memórias desconfortáveis, racionalizando-as ou negando-as.

Construir memórias
A memória não se reconstrói apenas. Constrói-se, como percebeu em 1930 o psicólogo cognitivo britânico Frederic Bartlett. Cada vez que falamos ou nos falam de um episódio da nossa vida, não estamos apenas a reconstruir o que aconteceu, estamos a construir em cima do que já existe: o nosso cérebro vai juntando informações ao registo inicial. “Deixamos de ter noção de qual a memória original e quais as sucessivas atualizações. As nossas memórias explícitas são uma sombra da realidade, uma visão subjetiva e inexata do que realmente aconteceu”, conclui Ana Sofia Nava.

Há dois tipos de falsas memórias. “As espontâneas, quando o sujeito faz o seu entendimento do que ocorreu e não necessariamente o relato fidedigno”, diz a psicóloga clínica Patrícia Moreia. “E as sugeridas, quando o sujeito é influenciado acidental ou deliberadamente.”

E se entre amigos e família esta construção individual pode dar azo a conversas infinitas com opiniões contraditórias sobre o que aconteceu, campos há nos quais estas rasteiras da memória podem ter implicações graves. É o caso das questões judiciais, nas quais um pormenor “inventado”, uma recordação confusa ou uma identificação errada pode conduzir à prisão de um inocente.

Em Portugal não há estatísticas sobre o tema, mas nos EUA os números são assustadores.
O National Registry of Exonerations, um projeto da Escola de Direito da Universidade de Michigan que estuda casos de inocentes condenados por erros judiciais, registou, em 2013, 87 erros judiciais. A origem das condenações erradas deveu-se, em grande parte, a fatores como o falso testemunho e identificação errada.