#powerwoman: Ana Ros, a melhor chef do mundo

Ana Ros
Lisboa, 09/04/2018 - Entrevista à chef Ana Ros (Diana Quintela/ Global Imagens)

Ana Ros é aos 44 anos uma das chefs de cozinha mais influentes do mundo. Nunca decidiu ser cozinheira: fez ski na seleção da Eslovénia, ballet como profissional e estudou Relações Internacionais. Aos 22 anos apaixonou-se, depois casou e mudou-se para as montanhas para tomar conta do restaurante dos sogros, o Hisa Franko, que hoje integra várias listas dos melhores restaurantes do mundo. A mãe jornalista e o pai médico não adoraram a ideia mas são eles e as experiências que lhe ofereceram na infância que Ana Ros refere como as maiores influências para a cozinha que faz hoje.

Diz que é uma mulher forte e intensa e que quando se é educado com exigência não se consegue fazer coisas medianas. Continua casada, tem dois filhos adolescentes que adora e diz ainda não saber lidar com a culpa das ausências da maternidade. Esteve no festival gastronómico Peixe em Lisboa, que acaba este domingo, dia 15, a fazer palestras sobre o seu trabalho e uma truta que ajudou a recuperar.

Ana Ros (Diana Quintela/ Global Imagens)

Como é que se sente ao ser considerada uma das melhores chefs do mundo?

Não me vejo como uma das melhores chefs do mundo porque creio que isto é tão subjetivo. Acredito que ainda tenho muito para fazer e para aprender. Não me vejo como uma pessoa diferente das outras.

Mas a Ana ganhou dois prémios da revista Restaurant – o de melhor chef feminina de 2017 e o seu restaurante ficou na lista dos 50 melhores restaurantes do mundo. São prémios muito objetivos.

Sim. São prémios objetivos, porque é a nossa indústria que vota. Creio que os jurados reconheceram o meu trabalho, que é mais do que apenas trabalhar na cozinha, que se relaciona também com a atenção trouxemos para a nossa região e para os seus produtos específicos, encontrar as velhas tradições da agricultura, recolher esses elementos. É mais do que o trabalho na cozinha, o trabalho de um chef deve ir além disso.

Faz muita pesquisa para fazer as suas cartas?

O que tentamos é focar-nos no território em que estamos e na estação do ano. Isto que dizer, claro, muita pesquisa. Muitas coisas foram perdendo-se no tempo. Temos agora uma ótima equipa na cozinha e portanto muito mais é possível. Quando usamos os contactos com os agricultores locais não podemos ser muito seletivos, não podemos dizer “só quero as pernas da frente de um cabrito”, temos de levar o animal inteiro. Por isso, é preciso ter um conhecimento de como trabalhar todas as partes do animal.

“Eu sou uma pessoa muito intensa e às vezes sinto-me no limite de não saber se não são demasiadas coisas na minha cabeça.”

Esse conhecimento consegue-se a perguntar aos velhos o que era costume fazer-se naquela região ou é uma investigação académica sobre as possibilidades alimentares de cada parte do animal?

As duas. Para dizer a verdade ambas as partes são necessárias. O meu marido vem de uma família muito tradicional, a mãe é uma excelente cozinheira e ela sempre foi muito objetiva na forma como trabalhava a carne: levava um cordeiro e dava destino a cada parte do animal. Fazemos isso e vamos mais além – fazemos um upgrade no conhecimento tradicional. Mas acredito que na cozinha o melhor faz-se a partir da tradição. As novas gerações podem melhorar o que está feito.

Chef Ana Ros (Diana Quintela/ Global Imagens)

E o que tem a dizer acerca das memórias? O seu trabalho também está muito relacionado com as memórias da infância.

Sim, sem dúvida. É justamente sobre isso que o meu livro vai falar. Em setembro de 2018 vou editar um livro com a [editora americana] Phaidon e o que estou a tentar fazer é construir um conceito diferente para o livro: a ideia é falar dos momentos psicológicos em que decidimos como vamos atuar na cozinha. Esses momentos são uma montagem da nossa personalidade, da nossa infância, da forma como a minha mãe cozinhava. Há momentos que têm um impacto muito grande na cozinha… O meu pai era médico e por isso tinha as portas abertas em todas as quintas das montanhas da Eslovénia. Memórias como a que tenho de mim e da minha irmã a tirarmos algodão das cabanas de montanha, ou de estarmos às 5 horas da manhã a comermos a coalhada do queijo fresco, que nos davam os pastores, em vez de o darem às galinhas, são coisas que me marcam. Mas também os momentos de infância ao pé do mar. A minha mãe é da costa e é muito ligada ao mar. Todas as tardes que passámos na nossa casa no leste da Eslóvenia fomos buscar comida à praia ou debaixo do mar, apanhado ostras e outros moluscos ou conchas da areia e depois lavávamos tudo no mar e cozinhávamos ao ar livre.

A sua cozinha é a síntese dos dois mundos: o campo e o mar juntos?

Sim, claro. Estes dois mundos trabalham em mim como uma memória. Mas depois nessas mistura que faço agora no restaurante há também uma explicação maior para que funcione bem. O mar e o campo conjugam-se naturalmente: todas as nossas montanhas estão viradas para o mar e subindo mil metros podemos ver a baía de Trieste, apenas a 50 quilómetros de distância. Temos a mineralidade, a humidade do mar a vir para a montanha.

Para escrever o livro que vai sair em setembro e que é, no fundo, a descrição do seu processo criativo que parte das memórias teve a ajuda de um psicólogo?

Isto é muito curioso… Eu tenho uma amiga que é psiquiatra e um dia liguei-lhe e disse-lhe que precisava de psicoterapia: “isto é demasiado para mim,” disse-lhe eu. Eu sou uma pessoa muito intensa e às vezes sinto-me no limite de não saber se não são demasiadas coisas na minha cabeça. Ela respondeu-me que eu tenho uma personalidade muito forte para fazer psicoterapia, disse-me que eu precisava de começar a entrar em mim sozinha. Foi o que fiz. Comecei a fazer ioga e a correr, muito, e ajuda-me a limpar a minha cabeça e o meu coração também. Por esta razão também decidi escrever o livro sozinha.

Ana Ros (Diana Quintela/ Global Imagens)

Como é que descreve o seu trabalho de hoje?

No Hisa Franko temos hoje uma comunidade de mais de 40 pessoas a trabalhar diretamente connosco, acabamos de juntar à equipa um casal de botânicos para irmos mais além do que o conhecimento tradicional sobre as plantas. Há muita coisas sobre a utilização das ervas espontâneas que se perdeu que queremos recuperar. Para lá da nossa equipa, temos trabalhado com produtores locais na preservação de espécies – como a truta que venho apresentar em Lisboa – e na preservação de forma de produção. Estamos a dar o nosso contributo para a economia local e a verdade é que as novas gerações começam a fixar-se no vale onde estamos porque veem que é possível ter rentabilidade dos negócios locais. Estamos a dar o exemplo e, para dizer a verdade, penso que este trabalho com a comunidade local foi um dos fatores que me fez ganhar a distinção de Melhor Chef Feminina de 2017.

“Vivemos de facto numa sociedade tradicional e continuamos a ser julgadas pela forma como desempenhamos o nosso papel de mães”

Acredita que é um exemplo também para as suas colegas, as chefs?

Pois, acho que sim. Não gosto muito de dizer isso sobre mim própria, mas acho que sim. Tornei-me numa espécie de modelo a seguir, mas também tive cinco ou seis vezes mais entrevistas neste último ano do que as minhas colegas que ganharam este prémio antes de mim e acredito que há uma razão particular para isso. É que eu consegui, com sucesso, gerir uma cozinha de grandes dimensões e ter, ao mesmo tempo, uma família. Tenho dois filhos – uma rapariga com 13 anos e um rapaz com 15 – e quem quer que os conheça fica espantado pela sua inteligência social, pela sua abertura aos outros. Eles são superdesportivos, fazem atletismo, e têm um ótimo coração. São completamente independentes. O que eu digo sempre às minhas colegas mulheres é que pensamos sempre que temos de escolher entre ter uma família ou ter uma carreira. Eu tive que fazer muitos compromissos. Sou muito feliz por ter tido duas crianças e tenho uma equipa incrível. Neste momento os meus filhos vivem no nosso trabalho e o nosso restaurante é a família deles. Quando propus mudarmo-nos da casa onde vivemos, por cima do restaurante, para outra – porque eu trabalho demasiado – eles disseram-me que não. “A equipa é a nossa família” e eles encontraram os seus papéis dentro dessa família maior. É como uma comunidade cigana. Acho que posso ser um modelo por isso: porque nunca desisti nem de uma coisa nem da outra.

Isso significa que é possível conciliar uma família e uma carreira? Não é preciso prescindir de nada?

Claro que uma mulher, e eu falo sempre disto bem alto, que quer realizar-se nos dois aspetos tem de fazer concessões muito grandes para seguir em frente e isso talvez nem seja uma característica exclusiva deste setor. Vivemos de facto numa sociedade tradicional e continuamos a ser julgadas pela forma como desempenhamos o nosso papel de mães. É sempre suposto que uma mulher seja primeiro mãe e depois as outras coisas que quiser ser. Creio que para quebrarmos estes conceitos temos que falar dos problemas que enfrentamos. Vivemos constantemente com este sentimento de culpa que é um fardo muito pesado e não há muitas mulheres que falem disso.

Foi capaz de se livrar desse sentimento de culpa?

Não, continuo com ele. Mas os meus filhos estão a ajudar-me com isso agora.

Porque é que não falamos sobre isto? Porque é que as mulheres com carreira e filhos têm dificuldade em falar deste sentimento que partilhamos?

Temos medo de o enfrentar. É um momento psicológico muito difícil. Temos medo de falhar num lado ou no outro. Penso que neste mundo supercapitalista, superrápido, se falarmos dos nossos problemas arriscamo-nos a que pensem que não somos suficientemente fortes e o mesmo se pode aplicar a mostrar o nosso lado fraco na família. Mas eu falo disto aos meus filhos, precisamos de falar com a nossa família dos nossos sentimentos de culpa. E, claro, no trabalho tenho uma excelente equipa que por vezes me põe fora da cozinha e me diz para ir fazer coisas com os meus filhos.