As mulheres na atribulada História da Revolução

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O escritor e historiador André Canhoto Costa acaba de lançar o livro ‘As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal’ (editado pela Desassossego).

As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal’, de André Canhoto Costa (preço €21,10)

A crise de 1383-1385, a revolta de 1640, as revoluções liberais de 1820, a implantação da República em 1910 e o 25 de abril são os marcos analisados, numa história em que “a luta pelos direitos políticos acabou quase sempre manipulada por uma elite, garantindo a continuidade entre regimes económicos e políticos, mitigando a violência e fazendo de Portugal um oásis de pacifismo, mas também um país brando, apático e dos mais pobres da Europa”, refere o texto de apresentação ao livro.

E se as relações de poder e o status quo se foram mantendo, apesar das revoluções, o mesmo aconteceu com o protagonismo masculino, dominante nesses momentos revolucionários como noutros episódios da História de Portugal. André Canhoto Costa revela-nos, no entanto, e num texto especialmente escrito para o Delas.pt as figuras femininas que, de uma forma ou de outra, no lado vitorioso ou no derrotado, se destacaram nas cinco revoluções que trata no seu livro. Leia, abaixo, o texto do historiador:

Por André Canhoto Costa

A história das revoluções em Portugal apresenta uma curiosa tendência, quando nos valemos das fontes narrativas: a mulher é muitas vezes o símbolo da fação conservadora. Duas das mais famosas personalidades políticas da História de Portugal encabeçaram o grupo derrotado no tumulto político: Leonor Teles e Carlota Joaquina. E no entanto, é difícil encontrar personagens mais fascinantes nos livros de História. Se os números nos fornecem tendências ditas naturais ou forças irreprimíveis, a polémica historiografia de género é um sintoma de como a História é mais campo de batalha político do que ciência dos objetos. E que melhor forma de trocar as voltas ao cientismo do que centrar a nossa atenção na mulher – tida tantas vezes por objeto, outras por divindade insondável e perversa.

D. Leonor Teles foi magistralmente caracterizada por Fernão Lopes e as recentes biografias procuram resgatar do ódio popular a misteriosa aristocrata. Casada com um fidalgo de segunda linha, entrou no jogo da alta política seduzindo o rei D. Fernando. O cronista oficial da monarquia iria associá-la à vontade feminina, «desejosa de vingança». Para lá dos preconceitos da época, Fernão Lopes não hesita em dizê-la exímia conversadora. Procurou criar uma clientela poderosa e estabeleceu alianças com a aristocracia galega. As cores negras, com que entrou na narrativa mitológica das origens da nacionalidade portuguesa, talvez se prendam com a sua ambição política em 1383 – alimentando o sonho de ser rainha mas com o poder de mandar – afronta intolerável num mundo onde o ideal de cavalaria mostrava ainda uma saúde de ferro.

Na revolta de 1640, para lá do ódio a Miguel de Vasconcelos, a vice-rainha, menos conhecida mas nem por isso menos importante, era a duquesa de Mântua, casada com o duque daquela cidade italiana. Prima de Filipe IV, rei de Espanha, veio para Portugal na década de 1630 – quando a situação política parecia já incontrolável – honrar o compromisso de 1580: apenas pessoas de sangue real seriam toleradas no governo de Portugal. A duquesa parece ter acreditado no seu prodigioso secretário: Miguel de Vasconcelos. Com um programa implacável na recuperação das dívidas fiscais, apoiou a modernização do governo, o que significou, em grande medida, além do domínio de um rei espanhol, uma afronta à nobreza intermédia, paralisada na sua ascensão nos corredores do Estado e descrente agora das vantagens comerciais da união dos dois impérios.

A incarnação da mulher perversa teve ainda um novo e eloquente episódio em Carlota Joaquina. Este é talvez o caso onde se torna necessário um grande esforço de investigação, no meio da derrocada civilizacional conhecida como o fim do Antigo Regime. Com sonhos de governo e pretensão ao trono de Espanha, Carlota Joaquina casou o alegado conservadorismo em religião com uma escandalosa emancipação sexual. Foram-lhe imputados todos os crimes – incluindo o assassínio do rei D. João VI e seu marido em 1826 – e parece inegável que várias vezes conspirou em favor do seu filho D. Miguel. Mas também parece plausível que a sua fúria pode estar relacionada com a repressão de uma menina dotada e inteligente, que cedo revelou dotes políticos e inconformismo, soterrados em Lisboa, numa Corte decadente de um império em queda livre, e depois no Rio de Janeiro – cidade detestada – por estar longe do centro espiritual da sua amada e requintada Europa.

O fim do século XIX ainda manteve o costume de corporizar nas rainhas pérfidas as razões dos reinados malsucedidos. Entre 1908 e 1910, os republicanos viram na solidão da velha rainha italiana, viúva de D. Luís e mãe do rei D. Carlos, D. Maria Pia, um símbolo da decadência da monarquia. Outrora mulher deslumbrante, com elegância ímpar, vivia agora abandonada entre os seus gatos no velho Palácio da Ajuda, na companhia da sua criada de confiança, carregada de dívidas, dormindo ao pé de um calorífero de faiança, entre biombos de veludo para evitar as correntes de ar do casarão vazio. A mulher que irada – alegadamente – gritara contra João Franco depois do assassínio do seu filho e neto, talvez revelasse mais faro político do que muitos dos historiadores contemporâneos: a monarquia afundara-se por incapacidade política e intelectual dos seus ministros.

A primeira metade do século XX viu instalada a ditadura. Embora a revolução de 1974 se tenha devido sobretudo aos militares, e depois à população que apoiou a construção democrática, uma famosa figura merece todo o destaque: Catarina Eufémia. Mulher, mãe e trabalhadora rural, encabeçou a revolta por salários mais altos, em troca do trabalho duro. Foi assassinada com vários tiros, depois apresentados como acidentais. Para lá das discussões sobre a hipótese da sua filiação comunista, o gesto de coragem diante da violência armada, em maio de 1954, tem o recorte austero da tragédia clássica. Fixou o imaginário da resistência e alimentou durante algumas décadas o projeto de construir uma democracia popular. O imaginário popular é seletivo na sua sabedoria e é curioso constatar o contraste. Após séculos de conservadorismo perverso e aristocrático, uma das heroínas políticas do século XX, vem das entranhas da terra, encabeçar o lado certo da história.

Quem são as mulheres que mudaram o mundo?

 

Livro: “É importante que as meninas vejam modelos femininos”