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Eline Snel: “Gostaria que o mindfulness fosse uma disciplina como a Matemática ou Geografia”

Percorra a galeria e veja alguns dos destaques da entrevista à terapeuta holandesa de mindfulness Eline Snel [Fotografias: Gerardo Santos/Global Imagens]
"ensinamos pais e crianças a sentirem, em primeiro lugar, a lidarem com a frustração, a tomarem consciência sobre o que são os seus pensamentos antes de reagirem. É importante parar por um momento"
"Como tudo está online, hoje em dia os pais têm muito mais dúvidas sobre o que é a parentalidade, muito mais do que há 20 anos"
"O mindfulness não é sobre a resolução de problemas, é sobre a necessidade de prestar atenção, estar mais consciente das funções, do pensamento e dos sentimentos e de como o corpo reage a tudo isso"
"Crianças com mentes menos stressadas aprendem, planeiam, organizam-se melhor, memorizam, equilibram melhor as suas emoções"
"Os adolescentes, procuram e reportam o medo de falhar, é quase sempre sobre a escola. Querem ser bem sucedidos, não são magros, rápidos, inteligentes o suficiente. Nessa perspetiva, é quase semelhante, mas aqui tudo isto chega com um fator de depressão"
"Talvez as raparigas cheguem mais cedo ao mindfulness e muitas vezes pelo seu próprio pé. Talvez porque leem mais revistas femininas, onde estes temas são abordados, e acabem por estar mais despertas. Os rapazes vêm mais frequentemente encaminhados pelos pais."
"As pessoas sobreviverão se não fizerem mindfulness, mas um dia, quando forem pais, precisarão dele de qualquer forma"
"Descobri [aos 10 anos] que os meus sentimentos mudavam quando olhava para aquela imagem [rato Michey a sorrir]. Esta foi a primeira vez que senti que eu não era os meus sentimentos"
"Tornei-me enfermeira, trabalhei no hospital e percebi que este tipo de instituições são as que gerem mais stress, sobretudo para os doentes. Quando era dito a alguém que tinha cancro e que ia morrer, não havia ninguém que os ajudasse a gerir esses medos"
"Tive os meus medos, claro. Até porque isso faz parte da condição humana. Mas procurei centrar-me no momento, e teria sido muito mais complicado se não tivesse treinado a minha mente"

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Eline Snel tem 65 anos, pratica e ensina o mindfullness a crianças, adolescentes e adultos e acaba de editar em Portugal um livro sobre esta técnica para miúdos a partir dos cinco anos [Senta-te Quietinho como uma Rã] e sempre com as famílias por perto.

Esta especialista holandesa revela que a descoberta que fez aos 10 anos foi a que a ajudou, décadas depois, a superar dois melanomas e a ajudar o marido aquando de um transplante de rim e uma filha que teve uma recém-nascida com um tumor cerebral.

Hoje, a trabalhar em escolas, mas também a dar formação, Eline Snel alerta para os perigos da competitividade, do stress e da solidão online. Fatores, explica ao Delas.pt, que estão a atirar crianças para o burnout e adolescentes para a depressão. Uma conversa na qual pede para que o treino da mente passe a ser uma disciplina nas escola: tão importante como a matemática ou a geografia.

Um relato que não terminou sem antes Eline Snel deixar um exercício para que todos – miúdos e graúdos – pudessem fazer em qualquer momento, em qualquer lado, como pode ver no vídeo abaixo.

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Lança este livro Senta-te Quietinho como Uma Rã, pensado para crianças a partir dos cinco anos. Qual a idade mínima para fazer mindfulness numa criança?
Quando queremos ensinar aos miúdos algo sobre consciência, é preciso que tenham autoconsciência e, por isso, começar nos quatro ou cinco anos. Quando eles começam a falar do que sentem, aí começamos a trabalhar a partir dos quatro anos. Antes desse momento, não é tão fácil treinar estas capacidades. Perante isto, o trabalho é feito mais com os pais e de como podem viver de forma mais mindfulness com os seus filhos, aplicando a técnicas que passam, por exemplo, por não estar tanto tempo ou fazer tarefas com eles quando estão aos telemóveis.

Quais os maiores erros e os mais comum que os pais mais cometem, para lá do que acabou de referiu?
A maioria das vezes tem a ver com as reações automáticas que os pais têm para com as crianças, quando elas não prestam atenção, fazem birras, e aí os progenitores reagem automaticamente. A questão da voz, a forma como se fala, os gritos – e os miúdos gritam de volta -, é preciso evitar uma escalada e uma crise. Assim, ensinamos pais e crianças a sentirem, em primeiro lugar, a lidarem com a frustração, a tomarem consciência sobre o que são os seus pensamentos antes de reagirem. É importante parar por um momento.

Faz isto desde os anos 80, que diferenças nota nos pais e nos filhos ao longo destes anos de trabalho?

Há uma enorme diferença nos últimos 20 anos. A velocidade da vida é muito mais alta, o que todos têm e devem alcançar é muito maior. Antes, tudo era mais descontraído e não existiam, constantemente, as solicitações constantes do mundo online. Tudo isso consome muito tempo e deixa todos muito cansados.

Os pais estão preparados para fazer este abrandamento?
Como tudo está online, hoje em dia os pais têm muito mais dúvidas sobre o que é a parentalidade, muito mais do que há 20 anos, quando havia apenas um livro de referência (risos).

Os pais procuram-na antes das crises, ou procuram quando já está instalada?
A maioria dos pais vem porque querem ser diferentes, logo desde o início. Querem também dar aos seus filhos uma educação sábia, em que eles crescem num bem-estar familiar, procuram ser uma família que consegue viver com os altos e baixos.

“[Os pais] Querem também dar aos seus filhos uma educação sábia, em que eles crescem num bem-estar familiar”

Mas eles procuram-na sobretudo porque querem maior bem-estar ou porque desesperam por uns momentos de calmaria?
Ambos (risos). Talvez a última em primeiro lugar (mais risos), Muitos pais deixam os seus filhos nas aulas de mindfulness e dizem: tome conta do meu filho para que se comporte, aprenda, para que se concentre melhor. ‘E numa hora regresso’, dizem.

O que lhes diz?
Temos sempre um encontro com os pais, vincamos que as crianças precisam de apoio, e que isso não é apenas um fator que gira à volta da criança. O mindfulness é sobre relações a ter com os filhos. E, para ter uma, é preciso prestar atenção às coisas dos filhos, aos seus sentimentos, às suas ansiedades. Pedimos aos pais que arranjem cinco minutos diários com os filhos e que não lhes deem apenas os ficheiros audio enquanto os encaminham para os seus quartos, sozinhos.

Tem de dizer isso muitas vezes aos pais?
Frequentemente. Precisamos de o repetir cerca de três vezes ao longo de sessões de oito semanas. São muitas vezes, sim. Às vezes, parece que tenho uma espécie de varinha de condão e que farei o milagre. Mas o mindfulness não é sobre a resolução de problemas, é sobre a necessidade de prestar atenção, estar mais consciente das funções, do pensamento e dos sentimentos e de como o corpo reage a tudo isso.

É possível ter miúdos mais concertados e autoconscientes quando as crianças têm cada vez mais estímulos. E, mesmo na alimentação, ingerem substâncias tão agitadoras como o açúcar, por exemplo?
Não somos cavaleiros moralistas. Não falamos sobre isso, apenas pedimos atenção aos pais.

Mas ajudaria se as famílias pudessem gerir a ingestão desses agitadores?
Sim, mas também há a carne e tudo o resto. Não é por aqui que o mindfulness quer ensinar, a técnica procura a autoconsciência. Esta levará a todo o lado e até ao que é ingerido. Mas isso acontece pela via do mindfulness, não porque abordemos esses temas.

Como acalmar e concentrar as crianças para depois poderem fazer mindfulness?
Ensinar a autoconsciência aos pais e a forma como educam depois os seus filhos vai levar a uma maior consciência sobre o que é dado às crianças e a um melhor entendimento sobre o que deve ser feito e dado aos mais pequenos. Isto porque muitos pais confrontam-se com a dificuldade em dizer não, a estabelecer ordens. Receiam que os filhos fiquem zangados e não saibam lidar com isso.

Sabemos que a técnica procura também o contacto com o que nos rodeia, a natureza, o universo. Nesse sentido, não está em risco tendo em conta o medo crescente que os pais têm de tudo sobre o mundo fora de casa?
O mindfulness é sobre o medo dentro e o medo fora. É lidar com o medo como sentimento. Muitos pais estão inseguros acerca de si próprios ou temem que não são suficientemente bons pais, mas também têm o medo do que acontece fora de casa. Mas o medo é sempre o mesmo: é medo! Trata-se de um sentimento muito forte, talvez o maior que possamos ter, e é muito comum quando se pensa no futuro. Creio que o mindfulness é uma ferramenta que ajuda a lidar com isso.

“O medo é sempre o mesmo: é medo! Trata-se de um sentimento muito forte, talvez o maior que possamos ter”

E nas escolas, como se trabalha a técnica?
Aí, os miúdos aprendem que um mesmo tamanho tem de servir para todos. As mesmas coisas, ao mesmo ritmo, a mesma avaliação, mas o mindfullness ensina de uma outra forma: eles são completamente livres de aprenderem o que precisam, seja a ficar menos zangado, a ser mais concentrar, seja a memorizar melhor ou até a ser mais gentil.

Que tipo de reações recebe dos professores, nas escolas?
Na Holanda, o mindfulness está a chegar cada vez mais às escolas e o governo está cada vez mais alerta para esta necessidade, assim como os médicos. Os ecos que recebemos é que as crianças com mentes menos stressadas aprendem, planeiam, organizam-se melhor, memorizam, equilibram melhor as suas emoções. Sobre o que ouvimos dos professores, o stress não desaparece, mas a sua experiência em lidar com ele é muito mais pacífica. Sentem-se inclusivamente menos cansados ao fim de um dia, estão mais capazes de viver o momento e estão em maior contacto com as crianças.

Quais são as maiores preocupações de pais de crianças de cinco, 10 ou 15 anos quando a procuram?
Muitos pais chegam com os filhos quando notam falta de concentração, distração – não estarem sentados por um segundo na mesa -, falta de sono. Há muitos miúdos que dormem muito mal. Eles estão a ruminar, pensam que não são bons, inteligentes ou desportivos o suficiente. Os objetivos que colocamos hoje em dia nas crianças são enormes. Recentemente, na Holanda, as notícias deram conta de que a mais nova criança a ter um burnout tinha apenas dez anos. No que diz respeito aos adolescentes, eles próprios procuram e reportam o medo de falhar, é quase sempre sobre a escola. Querem ser bem sucedidos, não são magros, rápidos, inteligentes o suficiente. Nessa perspetiva, é quase semelhante, mas aqui tudo isto chega com um fator de depressão.

E por género, nota diferenças?
Aí não notamos tanto.

Como falou de magreza…
Sim, mas é transversal. Talvez as raparigas cheguem mais cedo ao mindfulness e muitas vezes pelo seu próprio pé. Talvez porque leem mais revistas femininas, onde estes temas são abordados, e acabem por estar mais despertas. Os rapazes vêm mais frequentemente encaminhados pelos pais. Talvez porque as meninas leiam mais revistas femininas, onde estes temas são abordados, e acabem por estar mais despertas.

Está a procurar trabalhar com adolescentes em escolas. Que diferenças nota entre aqueles que fizeram mindfulness em pequenos e os que começaram na adolescência?
Quando começam e têm 13 a 15 anos, eles chegam já a sofrer imenso com a ansiedade e depressão. Falamos de já uma grande quantidade de adolescentes e que está a aumentar em 20%, creio, nos últimos cinco anos.

“Quando começam e têm 13 a 15 anos, eles chegam já a sofrer imenso com a ansiedade e depressão”

E isso decorre de quê, tendo em conta a sua experiência?
Vem muito do facto de se sentirem sós num mundo digital, sem contacto direto. Os adolescentes que o fazem pela primeira vez, estão mesmo a sofrer. Alguns têm pais divorciados, andam de casa em casa a cada semana, e muito dificilmente falam disso. E essa é a grande diferença entre os mais novos e os mais velhos, estes raramente falam sobre o que vivem. Os mais pequenos, quando se lhes pergunta alguma coisa, respondem sempre algo.

Quando um filho de pais separados faz mindfulness, todos devem fazer?
O mindfulness apenas pode ser feito quando se tem um comprometimento pessoal consigo próprio, é só entre um e cada qual, não tem a ver com os outros. As pessoas sobreviverão se não fizerem mindfulness, mas um dia, quando forem pais, precisarão dele de qualquer forma. Agora, é muito melhor para todos se todos praticarem até porque, depois do curso, existem os debates em casa. E meditar em conjunto é muito mais fácil do que fazê-lo sozinho.

As crianças devem ter alguma preparação antes de começar o treino?
Não. Quando estamos em grupos privados e fazemos entrevistas, procuramos saber o que querem que os filhos aprendam. A maioria diz que quer lidar melhor com a raiva, dormir melhor, ficar mais sossegado. Nas escolas, não fazemos entrevistas aos pais, cada criança tem acesso à formação e traz a suas próprias questões.

Se pudesse mudar a sociedade em matéria de mindfulness por onde começaria: crianças, pais, escolas?
Gostaria que o mindfulness fosse uma disciplina como a matemática ou geografia, que integrasse os currículos nas escolas. É uma aprendizagem, uma ferramenta mental. Tal como treinamos o nosso corpo, nunca pensamos em como treinar a mente ou o nosso coração. Esta sociedade autocentrada já não está a funcionar mais, está a pior porque não se trata apenas de mim. Mindfulness é ter uma relação connosco, mas também com o vizinho, com o mundo, com a natureza, o universo. Não é apenas sobre mim. Toda a gente está a o sofrer o mesmo da mesma maneira: a solidão, a dor.

Como descobriu o mindfulness, qual foi o caminho da Eline?
É uma longa história (risos). Quando tinha dez anos, estava esquiar com a minha família e parti a perna nos primeiros cinco minutos das férias. Tive de ir para o hospital, ser operada, mas a minha família estava a três horas de viagem do hospital e não podia ir ver-me todos os dias. Senti-me muito só. Oposta à minha cama estava uma pintura do rato Mickey, que estava com uma cara muito feliz. Descobri que os meus sentimentos mudavam quando olhava para aquela imagem. Esta foi a primeira vez que senti que eu não era os meus sentimentos.

“A Eline não era o seus sentimentos”, como assim?
Podia trabalhá-los. Foi o início da minha descoberta, que comecei por fazer sozinha, sem professores, gurus, nada. Decidi começar a ler e, dos 16 aos 25 anos, comecei a meditar e a descobrir por mim própria o que era aquilo. Foi um período mito interessante. Entretanto, tornei-me enfermeira, trabalhei no hospital e percebi que este tipo de instituições são as que gerem mais stress, sobretudo para os doentes. Quando era dito a alguém que tinha cancro e que ia morrer, não havia ninguém que os ajudasse a gerir esses medos. Foi aqui que comecei a usar a meditação e mindfulness a pessoas que sofriam de stress. Tinha 25 anos. Hoje tenho 65 anos e continuo a fazê-lo (risos). Eu própria tive, por duas vezes, cancro – melanoma -, a minha neta teve um tumor cerebral quando nasceu, o meu marido fez recentemente um transplante de rins. E tudo em três anos.

Como geriu?
Tive, eu própria, muitas experiências. Portanto, consigo perceber o que outras pessoas podem sentir. Mas a maior coisa que se pode aprender é que quando focamos o aqui e o agora e não prestamos atenção a todas as coisas que poderão acontecer – e que provavelmente nunca irão acontecer – essa é a lição número um. Geri tudo isto momento a momento, sentir o que tenho e não aquilo que gostava.

E nunca teve o medo?
Tive os meus medos, claro. Até porque isso faz parte da condição humana. Mas procurei centrar-me no momento, e teria sido muito mais complicado se não tivesse treinado a minha mente. A duração de tudo acaba por ser muito mais curta. É claro que hoje em dia tenho de controlar a questão do cancro, faço-o há anos, mas não tenho medo dos exames de rotina porque percebo que não sei o que se vai passar. A única conclusão a que chego é que não sei que resultados vou ter, portanto é escusado estar angustiada. Simplesmente, não sei! Então, lembro-me que uma das vezes, durante esse compasso de espera, comprei-me um belo par de óculos de sol (risos). Tudo isto leva o seu tempo. O mindfulness não é um truque, é um caminho, é uma forma de vida e só temos acesso a ele quando o praticamos. Não precisamos de treinar durante um dia inteiro, mas deve ser prosseguido diariamente.

“Tive os meus medos, claro. Até porque isso faz parte da condição humana. Mas procurei centrar-me no momento”

Durante as fases mais complicadas, o que disse ao seu marido? Ou à sua filha? Como os levou?
Não os posso levar, só me posso levar a mim. Se eu estiver bem, eles sentem-se mais confortáveis com eles próprios, mais relaxados. É isso que acontece nas formações que dou e nas famílias que praticam o mindfulness. É como se fosse uma luz que existe por se estar ali. Quando se vive a momento a momento, isso é muito energético.

Imagem de destaque: Gerardo Santos/ Global Imagens

Esta respiração alivia o stress em segundos