Flavi Andrade: “Não é verdade que as mulheres gostam de bebidas doces e fracas”

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Nasceu no Brasil há 41 anos, mas foi entre Espanha e Portugal que Flavi Andrade se dividiu na última década e meia como barmaid. Jornalista de formação, Flavi começou por explorar a coquetelaria em Sevilha, inicialmente apenas para pagar o doutoramento, mas o mundo dos destilados acabou por a fascinar. Já em Portugal, passou pelo Guarita Terrace Bar, no Algarve, durante quatro anos, antes de chegar à capital para liderar o novo Gastro Bar do hotel Altis Avenida, com uma das vistas mais impactantes de Lisboa.

Nomeada quatro vezes para o prémio de Melhor Barmaid pelo Lisbon Bar Show, Flavi é hoje um nome sonante no mercado português. Estes dias 14 e 15 de maio está de volta ao Convento do Beato para discursar na sexta edição do Bar Show, pela primeira vez como oradora. Ao Delas.pt fala sobre a importância desta feira de coquetelaria no início do seu percurso em Portugal, da presença feminina na indústria das bebidas e ainda sobre o que bebem atualmente os portugueses.

 

Há quantos anos participa no Lisbon Bar Show?
Desde o início, até porque a primeira edição coincidiu com a minha mudança para Portugal. Eu morava em Espanha na altura, em Sevilha, e preparava-me para assumir um projeto no Algarve, o Guarita Terrace Bar. Antes de me mudar, passei pelo Algarve e vim para Lisboa assistir ao primeiro Lisbon Bar Show, antes de voltar para Espanha e fazer as malas.

Começou por ser visitante?
Sim, na primeira edição vim como visitante porque tinha conhecido o evento durante uma apresentação em Madrid. E foi muito importante porque na altura foi o meu primeiro contacto com o mercado português de bar. Só no ano seguinte, em 2015, criaram a categoria de Melhor Barmaid.

Como era o mundo dos cocktails quando chegou a Portugal?
Era tudo novidade. Estávamos em 2014, ainda se vivia o boom do gin vindo de Espanha. Os bartenders eram desconhecidos, enquanto hoje já têm muito destaque. Na época, só havia praticamente um gin português.

Na altura chegou a ganhar o primeiro prémio na categoria de barmaids do evento.
Sim, foi logo no ano em que abriram a categoria. Para mim foi como ser abraçada pelo setor, principalmente porque eu estava num cantinho de Portugal, no Algarve. Esta sexta edição é a primeira em que não estou nomeada, mas ao contrário do que se possa imaginar eu não olho para isso com tristeza. Olho com alegria porque há cada vez mais mulheres neste mercado. Como a Constança Raposo Cordeiro, a Tatiana Cardoso e a Marlene Guerreiro, que estão nomeadas. Este ano, como oradora, vou focar-me mais sobre a experiência do cliente, que vai muito além das técnicas e das bebidas.

Olhando para o cartaz do Lisbon Bar Show, as mulheres estão em clara minoria. Ainda há muito caminho por fazer?
A presença feminina está a crescer, mas ainda faltam muitas mulheres no bar. Percebi que ao longo do caminho algumas desistem, não por serem mulheres, mas não é uma profissão fácil. Não é só fazer cocktails. Coquetelaria é organização, é limpeza, é gestão, trabalho em equipa. Acho que as mulheres também tiveram que romper os seus próprios preconceitos ao longo deste percurso. Antes durante uma contratação, a mulher tinha que ser bonita, ter formas exuberantes, trabalhar com tal decote. A partir do momento em que começamos a colocar um curriculum na mesa e mostrar que temos muito mais para oferecer, isso muda mentalidades.

Mas ainda tem clientes desconfiados por ser uma mulher a aconselhá-los sobre bebidas?
Não tenho uma história recente para contar, mas ao longo destes 15 anos de bar tive histórias mais desagradáveis, outras menos, ora por ser uma figura feminina, ora por ser confiante. Já que falamos em romper preconceitos, eu e o meu marido somos um bom exemplo. Ele trabalha comigo, eu sou chef bartender e ele é o meu primeiro bartender.

É a Flavi que coordena a equipa da qual faz parte o seu marido?
Sim, fui eu que o contagiei com a paixão pela coquetelaria. Nós conhecemo-nos no Brasil, mudámo-nos juntos para Sevilha, eu para me doutorar em jornalismo e ele como publicitário. Acabámos por trabalhar na mesma área e, quando me mudei para Portugal, tinha a possibilidade de trazer alguém da minha confiança. Não por ser meu marido, mas achei que ele falava a mesma linguagem que eu. Quando vim para o Gastro Bar, dei a mesma resposta e, ao verem-nos a trabalhar juntos, perceberam que funcionava.

Falemos das suas raízes. Onde nasceu no Brasil?
Sou da capital, de Brasília, e estudei e trabalhei no Brasil como jornalista durante 10 anos. Formei-me aos 21 anos, apresentei programas da TV para a Globo e Record, escrevi para jornais e fiz assessoria de um ministro do estado. Mas entretanto quis fazer o doutoramento e fui para Sevilha. Como não tinha bolsa, tive de ganhar dinheiro para pagar o curso, e foi assim que comecei a trabalhar em restaurantes e num bar. Logo eu que achava que nem gostava de bar [sorri].

Que tipo de bar era?
Era um bar pequeno, sem notoriedade, onde apenas faziam bebidas combinadas, rum com cola, mojitos, caipirinhas. Não havia coquetelaria. Mas eu gostava muito da relação com o cliente. Mais tarde, ainda cheguei a trabalhar como jornalista, mas acabei por regressar para o mundo dos bares, já noutro espaço de Sevilha. Foi aí que mudou a minha relação com a mixologia. Fui trabalhar para um bar com 250 referências de gin, 180 de rum… Para quem tinha saído do Brasil, o gin era uma bebida muito desconhecida.

Como aprendeu?
A limpar a garrafeira. Por cada garrafa que tirava do lugar, eu espreitava o rótulo e todos os dias dedicava 40 minutos no google a pesquisar sobre uma bebida. Passei de jornalista-bartender a bartender-jornalista. Vi que a coquetelaria estava a mudar e cruzei-me com muitos jovens inspiracionais. Não andei em nenhuma escola de hotelaria, mas acho que o meu empenho e as pessoas que me rodearam foram fundamentais. Tive quatro anos neste bar e depois passei para um mais especializado em coquetelaria, até que me mudei para Ayamonte temporariamente, apenas para fazer o serviço de bar de verão.

E como chegou a proposta para trabalhar em Portugal?
Nós até pensávamos voltar para o Brasil e abrir o nosso próprio bar. Mas quando estava em Ayamonte cheguei a ir ao Guarita Terrace Bar, em Castro Marim, e mais tarde convidaram-me para ficar como bartender principal. Fizemos muita coquetelaria, inicialmente até com uma carta influenciada pela minha experiência em Espanha, e conseguimos transformar um bar de temporada num bar de ano inteiro. Começou por funcionar só quatro meses por ano, hoje só encerra um mês.

E, mais uma vez, voltou a mudar de cidade após quatro anos. Foi convidada a liderar o bar do Gastro Bar do Altis Avenida, em Lisboa?
Fui indicada, fiz várias entrevistas, várias provas de cocktails e acabei por ficar como chef de bar. Temos uma vista incrível e um bar descomplicado, que tenta agradar a todos os paladares. O Gastro bar tem ainda como raiz o Feitoria do chef João Rodrigues, com uma estrela Michelin no Altis Belém, e a cozinha do chef do Altis Avenida, João Correia.

O que distingue o Gastro Bar?
Primamos muito pela matéria-prima de qualidade, algo que faz parte da cozinha do chef João Rodrigues, e temos uma complexidade que está presente mais nas preparações e não tanto no momento. Fazemos xaropes com fruta frescas, esprememos os sumos todos os dias. E o nosso menu foi construído tendo por inspiração sabores, temos o cocktail de baunilha, o de coco, o de laranja, o pêssego. Então o cliente vai focar-se nesse sabor, que até pode não ser o ingrediente mais predominante.

Que tipo de preparações fazem previamente?
Um cocktail fica pronto, no máximo, num minuto e meio. Mas por detrás disso, existem infusões que têm de ser feitas 24 horas antes. Por exemplo, o cocktail de coco obriga a uma infusão de dia e meio e o café salgado que surge na borda do copo de outro cocktails, é comprado em grão e triturado por nós. Há muitos pormenores dentro da coquetelaria.

As mulheres gostam mesmo de bebidas mais frutadas?
Não, não é verdade que as mulheres gostam de bebidas doces e fracas. Gostam sim, de bebidas equilibradas, mas cada mulher tem o seu gosto. Às vezes ainda acontece aqui no bar um cliente pedir um cocktail mais forte e outro mais frutado. E alguns colegas pensam: ‘O forte é para o senhor e o outro para a senhora’. E é totalmente o oposto. E é ótimo ver que isso está a mudar.

O que bebem os portugueses hoje em dia num bar de cocktails?
O gin abriu as portas para a coquetelaria na Península Ibérica, não há dúvidas. Mas os nossos clientes já não têm medo de cocktails com mezcal, tequila e whisky. Os portugueses hoje estão muito mais abertos, já estão a criar o hábito do cocktail. Há bons bares em Portugal e quanto mais tivermos, melhor vai ser para todos.

Como perceber o que um cliente gosta de beber?
Não há regras, mas há bom senso e atenção. Pergunto o que mais gosta de beber, se é doce ou mais cítrico. Se tem algum destilado da sua preferência… Vamos descobrindo, pergunta a pergunta, e é muito importante criar um laço com ele porque o nosso objetivo não é só vender, é que ele saia satisfeito.

Tem algum cocktail preferido?
Sim, eu adoro um dry martini. É aquele cocktail que tenho o maior prazer a fazer. Mesmo as recriações, os twists, com base original da receita, eu gosto muito mesmo.