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Laura Sagnier: “A maternidade em Portugal está muito mais enraizada do que em Espanha”

Percorra a galeria e conheça as oito situações de vida, identificadas pelo estudo, que sintetizam as principais características dos cerca de 2,7 milhões de mulheres, com idades entre 18 e os 64 anos. [Fotografias: Shutterstock]
'Tudo pela Frente': Inclui 9% das mulheres. Integra as mulheres mais jovens, com uma idade média de 23 anos, e cuja vida está ainda por construir. A maior parte está a estudar e, por isso, vive em casa dos pais. Ainda não têm filhos/as nem vivem com a pessoa parceira, pelo que esta é a situação da vida em que dispõem de mais tempo para si próprias. 79% declarou que gostaria de vir a ter filhos/as e de ser mãe pela primeira vez aos 28 anos, em média.
Têm um estilo de vida muito saudável: 74% pratica alguma atividade física de forma regular ou ocasional, 88% e costuma consumir bebidas alcoólicas menos de uma vez por semana 75%. Contudo, não se sentem felizes com a vida (40%). A felicidade média neste grupo é de 6,8 (de 0 a 10). As decisões-chave das suas vidas ainda estão por tomar.
'Tu e eu podemos': Corresponde a 16% e tem esta denominação porque as mulheres que a compõem, além de terem um trabalho pago que lhes confere independência económica, se encontram quase todas a viver com um companheiro, ainda que 2/3 não tenham formalizado a relação. A média de idades situa-se nos 32 anos.
É a situação com maior percentagem de mulheres que completaram mestrado ou doutoramento (17%) e uma das quais em que elas têm menos dificuldades em fazer chegar o dinheiro até ao fim do mês. Estas mulheres ainda não foram mães, mas a larga maioria diz que gostaria de ter filhos/as, no futuro. Mais de metade diz que se sente feliz com a vida, sendo a felicidade média deste grupo das mais elevadas entre os oito perfis: 7,6.
'Eu posso'. Representam 12% e têm, em média, 34 anos. São mulheres que costumam ter apenas a 'frente trabalho pago', o que lhes confere independência económica, mas nem sempre a suficiente para viverem sozinhas - metade vive em casa dos pais. Apenas 1/3 tem pessoa parceira, mas não vive com ela. A situação económica é menos robusta do que a do grupo anterior, não por terem rendimentos inferiores, mas por contarem só com um ordenado.
Para estas mulheres, o trabalho é central, e metade declara mesmo que trabalharia ainda que não precisasse do dinheiro. É o perfil que inclui mais mulheres que nunca quiseram ter filhos/as. É um dos grupos com maior percentagem de mulheres que afirmam que a vida está abaixo das suas expectativas (62%). A felicidade média é de 6,6.
'Resignadas'. São 11%. Esta situação inclui mulheres cuja vida é muito marcada pela frustração de não conseguirem um trabalho pago, apesar de ainda terem tempo pela frente para remediá-la - a idade média é de 39 anos. Grande parte delas está desempregada e ativamente à procura de emprego (64%). É uma das situações com mais mulheres que deixaram de estudar quando concluíram o ensino básico e ainda com menor número de licenciadas (20%). Mais de metade vive com o companheiro e tem filhos/ as.
Neste grupo a idade não é uma questão determinante, uma vez que abrange mulheres dos 18 aos 64 anos. É um dos oito perfis a apresentar um elevado consumo de antidepressivos (22% fazem-no com frequência, e 5% uma a três vezes por mês). As mulheres deste grupo são as que referiram, mais frequentemente, ter sido vítimas de assédio no trabalho e de violência doméstica e de género. A felicidade média é a segunda mais baixa: 6,4.
'Em luta': São 13% e têm, em média, 40 anos. A grande maioria das mulheres nesta situação acumula as três frentes – “trabalho pago, pessoa parceira e filhos ou filhas” – e encontra-se em sérias dificuldades para conseguir lidar simultaneamente com todas. É o perfil em que mais mulheres têm excesso de peso - 25% são obesas – e que apresenta uma percentagem maior de mulheres que se declaram demasiado cansadas - 19% 'sempre' e 68% 'quase sempre'.
Este é também um dos perfis que regista mais mulheres que dizem que não trabalhariam se não precisassem do dinheiro (43%) e que declaram que a vida está abaixo das suas expectativas (65%). É ainda o perfil em que uma percentagem maior tem mais dificuldades para fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. Ainda assim, a felicidade média deste grupo é de 6,8.
'Tudo sob controlo'. É a situação mais numerosa: 18%. e é assim designada porque a grande maioria das mulheres nela incluídas tem na sua vida as três frentes, mas consegue lidar com estas sem grandes dificuldades. O sucesso que revelam a ultrapassá-las é, precisamente, o que as distingue do grupo anterior. Estas mulheres têm, em média, 41 anos. É um dos perfis em que há mais licenciadas - metade delas tem um curso superior. 78% têm trabalho pago e um companheiro, com quem vivem.
Tendo em conta o elevado nível de qualificações, é um dos perfis em que as mulheres têm maiores rendimentos. Nele verifica-se o valor mais alto de mulheres que recusaram alguma oferta de trabalho mais exigente ou que colocaram um «travão» no trabalho pago por motivos pessoais/familiares (37%). Quase 2/3 manifestaram que se sentem felizes ou muito felizes com as suas vidas. A felicidade média é a segunda mais elevada: 7,8.
'Realizadas': Perfazem 11% e apresentam uma idade média de 55 anos. É um dos perfis que inclui mulheres mais velhas: entre os 50 e os 64 anos. Este perfil contempla mulheres que, tendo ultrapassado as primeiras fases do seu ciclo de vida adulta, se sentem felizes ou muito felizes com a vida que construíram.
É o grupo com a percentagem mais elevada de trabalhadoras independentes qualificadas (10%), de proprietárias de um negócio/empresa (14%), mas também de mulheres que trabalham mais horas por semana, viajam mais em trabalho e que têm maior flexibilidade para trabalhar a partir de casa. Praticamente todas têm filhos/as, trabalho pago e companheiro, ou, pelo menos, duas destas frentes. É o grupo mais realizado com a relação que tem (81%) e o que tem maior felicidade média com a vida, entre todos os perfis: 8,5.
'Esgotadas'. São 10%. Esta situação abrange mulheres muito marcadas pelo facto de não terem conseguido satisfazer as suas expectativas em relação à vida, e por terem, regra geral, pouco tempo para remediar essa frustração. Do ponto de vista etário, estas mulheres têm um perfil semelhante às 'realizadas': têm entre 50 e 64 anos, e uma média de idades de 57 anos. Praticamente metade tem trabalho pago e, destas, mais de 1/3 são funcionárias públicas. É a situação em que mais mulheres reconhecem que não trabalhariam se não precisassem do dinheiro (47%).
Neste perfil, 40% parou de estudar quando completou o ensino básico (o dobro das «realizadas»). É também nele que uma maior proporção de mulheres se sente 'enganada' com a relação de casal (42%), o que detém uma maior proporção de 'mães arrependidas' ( 9%) e aquele em que mais mulheres reconhecem que a vida ficou aquém das suas expectativas (67%). A felicidade média é a mais baixa de todos os grupos: 5,9 .

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A economista espanhola Laura Seigner é a coordenadora do estudo, realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), que se apresenta como o maior já feito sobre como as mulheres portuguesas são e sobre o que sentem e o que pensam. “As mulheres em Portugal, hoje”, título da investigação que foi divulgada e debatida no passado dia 12, em Lisboa, são mais de 400 páginas que refletem as atitudes, comportamentos e sentimentos de cerca de 2,7 milhões de mulheres com idades entre os 18 anos e os 64 anos.

Um terço das portuguesas não é feliz, 51% das que trabalham estão infelizes no que diz respeito ao emprego pago que têm, a grande maioria declara que sente “demasiado cansada” e que acumula praticamente todo o trabalho não pago (tarefas domésticas e cuidados dos filhos), sem poder contar com o parceiro para partilha desse trabalho – se a renovação de gerações acontecer a cada 30 anos, será preciso esperar 180 anos para essa partilha ser igualitária. Por outro lado, o parceiro/a é o critério que mais pesa na felicidade das mulheres portuguesas. Estas são algumas das conclusões de uma investigação que verificou que a vida das mulheres em Portugal é muito determinada por dois dos parâmetros: a idade e o nível de escolaridade. Estando a primeira fortemente relacionada com as frentes que as mulheres podem acumular na vida: «trabalho pago, filhos e filhas, e vida em casal».

Laura Sagnier é economista e coordenadora do estudo “As mulheres em Portugal, hoje”[Fotografia: DR]
Em entrevista ao Delas.pt, à margem da conferência de apresentação da investigação, Laura Sagnier explica alguns dos dados e das conclusões deste estudo, refere o que mais a surpreendeu e as diferenças que encontrou entre portuguesas e espanholas.

 

Já tinha feito um trabalho semelhante para a realidade espanhola.

Sim, o que aconteceu é que eu tinha trabalhado na empresa que fez esse estudo, desde que terminei os estudos e onde comecei como estagiária. E nos últimos seis anos fui diretora do escritório. Depois de 25 anos a trabalhar muito, e nos últimos com a direção, sofri de stress laboral e o médico aconselhou-me a parar dois anos. Eu nunca tinha parado na minha vida. Foi complicado no início e decidi – e como tinha duas filhas, na altura adolescentes, que ia dedicar esses dois anos a fazer um estudo como aquele que tinha feito para os meus clientes para as mulheres e que teria como destinatário as minhas filhas e as filhas das minhas irmãs – somos três irmãs e todas temos filhas. Seriam elas o target deste estudo. Eu custeei esse trabalho, mas tive a ajuda da PRM, que quando tinha espaço nas equipas me cedia alguma pessoa. Por isso, enquanto o estudo português foi feito em cinco meses, o de Espanha demorou dois anos. Este estudo chegou à Fundação [Francisco Manuel dos Santos] e eles acharam que era boa ideia fazê-lo em Portugal.

Tendo passado por essa experiência de stress laboral reviu-se naquela que é uma das principais conclusões do estudo nacional, que é o cansaço quase extremo das mulheres portuguesas?

Bom. Eu tenho de admitir que tinha muita sorte, porque eu tive sempre ajuda em casa. As questões de organização passaram sempre por mim e pelo meu marido, mas na sociedade portuguesa só 15% tem ajuda remunerada. Eu estou nesses 15%, que na Espanha é 12%, ainda mais pequeno, porque em Espanha há menos mulheres a trabalhar. Mas a mulher espanhola também está cansada só que como a mulher portuguesa está mais no mercado de trabalho pago tem de conciliar mais.

Por que é que as mulheres portuguesas estão mais no mercado de trabalho que as espanholas?

Acredito que seja uma questão que tem mais a ver com a crise. Porque o trabalho de campo para o estudo em Espanha foi feito há quatro anos, estávamos muito mais afetados pela crise. Neste momento, não sei qual seria o resultado. Mas a verdade é que em Espanha há uma tipologia de mulheres que aqui não identificámos que designamos de “profissão ama de casa”, que são mulheres que dedicam a sua vida à família, não passam sequer pelo mercado de trabalho. Isto em Portugal não acontece porque a situação económica é mais complicada.

Os rendimentos são mais baixos.

Os rendimentos são mais baixos e em Portugal há mais famílias que não conseguem que o dinheiro chegue até ao final do mês.

Outra das diferenças entre as portuguesas e espanholas é que as espanholas se consideram mais felizes com a vida que as portuguesas – 57% contra 47%.

Não é tanto o considerarem-se mais felizes. Os dois estudos são perfeitamente comparáveis porque temos a mesma escala de medição. O que acontece é que em Portugal há mais mulheres infelizes do que em Espanha.

A que é que acha que isso se deve?

Acho que se deve ao facto de haver muitas mulheres portugueses que sofrem muito desse cansaço, para além de contribuírem para as despesas da família e depois há muitas que estão frustradas pelo facto de não conseguirem ter filhos – 10% das mulheres em Portugal queriam ter tido filhos mas não tiveram, em Espanha é muito menos. As que não tem filhos é porque não querem. E depois também há algumas que querem ter mais filhos mas acabam por ter só um, isto somado ao facto de que perto de 60% tem dificuldades em fazer o dinheiro chegar até ao final do mês sempre ou quase sempre. E, por último, penso que também contribui o indicador que vimos ser o que mais influi na felicidade da mulher, que é o parceiro. E vimos que o parceiro contribui pouco para as tarefas em casa e com os filhos, que é uma das coisas que faz as mulheres mais felizes. Então está tudo relacionado.

Disse na conferência que um dos dados que mais surpreendeu a sua equipa foi o facto de a violência doméstica ser transversal a todas as faixas etárias analisadas.

Sim, porque este é um fenómeno que estudámos menos em Espanha. Eu sempre pensei que a violência doméstica ia diminuindo à medida que a mulher se fosse tornando mais empoderada, e para mim o empoderamento vinha da educação. Então surpreendeu-me muito vê-la em estratos elevadíssimos, talvez seja um pouco mais reduzido, mas não é estatisticamente significativo.

Um dado interessante é o facto de as mulheres “realizadas” terem menos escolaridade e muitas menos rendimentos que as mulheres que têm “tudo sob controlo”, mas serem mais felizes.

Sim, mas isso é assim porque elas são mais velhas e muitas delas conseguiram o que queriam da vida, os filhos já são crescidos, têm uma boa relação com o parceiro e agora estão mais felizes. Passaram a barreira dos 50…

Tem a ver também com a gestão das expectativas?

E muito com a conciliação, porque elas já conseguiram, na vida, o que queriam e estão satisfeitas.

O tema da conciliação tem estado muito na agenda política em Portugal, mas parece ser difícil passar das intenções à prática, uma vez que passará – como mostra o estudo – também pela relação de partilha com o parceiro. Como é que isso pode mudar?

Acho que em Portugal há um trabalho muito importante a ser feito pela mulher em casa, porque aí não há políticas que salvem. Por isso, é que acho que este estudo tem de ser aplicado o quanto antes e o mais possível às jovens. São elas que têm de iniciar uma relação que já seja diferente das que viram nas suas casas.

A educação é comummente apontada como o grande fator de mudança dos comportamentos, mas os modelos que as jovens têm, nesse aspeto, podem levá-las a replicar o que veem em casa.

É muito difícil alterar os modelos de relações que funcionam de uma dada maneira há 20 anos. Então é muito difícil mudar aquilo que os pais fazem. Mas devem educar-se as novas gerações e eu acho que a universidade é um espaço perfeito, onde homens e mulheres começam a iniciar as suas vidas e onde lhes deve ser explicado que esses modelos não resultam. E não resultam para a sociedade porque depois há muitos divórcios, há poucos nascimentos…

E há violência doméstica…

Eu não sou especialista, mas acho que esta violência também tem muito a ver com o homem não estar preparado nem educado para assumir as funções que lhes cabem e para muitos a única forma de o exteriorizar é através da violência. Em 44% dos casais, atualmente, a mulher tem um nível de formação superior ao do homem e muitos homens não devem digerir isto bem, mas insisto: não sou especialista em questões de violência doméstica.

O que a surpreendeu nas mulheres portuguesas, com base neste estudo?

Uma das questões que mais me surpreendeu foi o quão próxima da maternidade está a mulher portuguesa por comparação com a mulher espanhola. A maternidade aqui em Portugal está muito mais enraizada do que em Espanha e isto também traz muita confusão para algumas mulheres que não podem ter o número de filhos que gostariam ou que não podem ter filhos.

Uma em cada três portuguesas sente-se infeliz com a vida

Este é o presente que as mulheres portuguesas mais querem