Lisa Gerrard: “De certa forma, gostava de ter nascido em Portugal para que pudesse ser fadista”

Lisboa: Concerto dos Dead Can Dance
[Fotografia: (João Girão / Global Imagen]

Ano e meio depois do álbum Burn ter sido originalmente lançado, em maio de 2021, Lisa Gerrard e Jules Maxwell, teclista da banda Dead Can Dance, preparam-se para estrear ao vivo e a partir de Portugal o trabalho aclamado pela crítica.

O arranque começa em Portugal, no âmbito do festival Misty Fest, e com sete concertos marcados, que começam já a 19 de novembro. Mas já lá vamos.

Antes, e a propósito desta estreia, a célebre cantora e compositora australiana – que deu voz a bandas sonoras de filmes icónicos como Gladiador ou Informador – conta ao Delas.pt como foi fazer este álbum e trazê-lo ao palco depois de uma pandemia, de uma guerra e de uma crise. Gerrard, de 61 anos, traça também um olhar sobre o seu percurso e, como integradora de culturas, fala do que mais aprecia musicalmente em Portugal: o fado.

Diz que todos os trabalhados merecem ser tocados ao vivo para ganharem nova vida. O que pode acontecer com Burn, que se estreia agora em palco ano e meio depois de ser lançado e seis anos depois das primeiras recolhas de sons?

A pergunta é interessante devido à forma como a música foi construída. As vozes foram gravadas primeiro, depois o Jules [Maxwell] fez os arranjos musicais. Não é musicalmente algo que nasceu de uma imediata interação em conjunto. Sinto, e estou um bocadinho cautelosa ao dizer isto, que quando estivermos juntos para interpretar estas peças, elas vão ganhar outra personalidade. Serão reconhecíveis, mas temos de admitir que quando algo é cantado primeiro, e a música é posteriormente criada à volta, não temos pontos de referência. É muito bonito, adorável, tudo, e o Jules criou esta incrível paisagem de sons e energia. Mas para fazer este trabalho ao vivo, sei que vai ser um pouco diferente.

Porquê?

Porque o processo de desbloqueio será diferente. Não é sobre repetição. E isso é que é magnífico. Este trabalho pode ter tantos contornos, tantas faces, é embriónico. As vidas mudaram, estamos todos diferentes, tudo mudou política e culturalmente para toda a gente.

“Estamos num momento em que devemos ser libertados do horror, da mediocridade […] Temos de correr riscos e viver”

Fala numa ‘nova personalidade’ sobre este trabalho. De que tipo será depois de uma pandemia, uma crise, uma guerra? Que mudanças em si e na mensagem ao público?

Nada muda nas mensagens ao público. A mensagem que quero passar é a de sair dos sistemas que existem e seguir fora de caixas que nos foram dadas para viver. Ir e descobrir-nos a nós próprios, encontrar novas capacidades de comunicação e ser poético. Estamos num momento em que devemos ser libertados do horror, da mediocridade, das coisas que nos são ditas que devemos fazer, das coisas que somos esperados que façamos. Temos de correr riscos e viver.

Quais em concreto?

Os riscos podem ser não interpretar as peças exatamente como elas são, cantar o que vem, estar no limite do precipício, e estou entusiasmada por isso. Haverá elementos muito estruturados, mas, no que depende de mim, estou empolgada por me encontrar com Jules neste contexto de vida. Não há como o palco para fazer o trabalho no seu pleno. Vamos para os estúdios e é tudo muito contido, é preciso ter a energia e o perigo. Viver é como andar na prancha (risos). Salta-se dessa plataforma e sobrevive-se, e ali aprende-se a nadar, a vencer todos os medos e tudo o que temos com a pessoa. É uma experiência de humildade fazer uma coisa destas, a melhor parte do mundo é esta predisposição para correr riscos. Ir às raízes do que somos como seres humanos, sem julgamentos, mas fazendo o melhor. Isto é o que sou, o que faço. Quando vou lá, partilho as minhas coisas com o público, a minha energia. E há uma integração comum, que é excitante e pode acontecer na rua, no palco, no carro, é uma elevação, é ali que se levita e se sai do horror de se estar vivo (risos).

Fala muito frequentemente em mediocridade. Porque o faz?

Não suporto isso, sabe. Foi isso que me conduziu a fazer música, e logo quando ainda era pequena, era tudo tão desinteressante para mim. Sim, tinha a minha linguagem. Não conseguia falar em inglês quando cantava, porque eu falava na minha língua ainda antes de falar inglês, se me percebe. O inglês é prático e para as coisas práticas e o que eu canto é para a arte.

Como foi crescer assim?

Estamos sempre e diariamente numa caixa, mas quando se trata de trabalho, temos de viver os sonhos, fazer coisas com a alma. Mesmo que se trabalhe numa linha de montagem é preciso fazer algo de reação à realidade. É preciso reagir e responder, mas não de uma maneira prática ou de uma forma deprimida, mas que permita a libertação daquele quadro. Não é o que se vê, é o que está por trás. É isto que a arte representa para mim. Comunica-se com ela de uma forma que não se comunica com a mente. É uma frequência. Num último plano, ser capaz de estar numa inocência sem sofisticação. Esta linguagem que eu canto é não sofisticada, é uma linguagem de [pausa] ciganos invisíveis [sorriso].

Diz que absorve as culturas por onde passa. Já esteve várias vezes em Portugal, o que mais gosta do que encontrou na música portuguesa?

Claro, fado. E de certa forma eu gostava de ter nascido em Portugal para que pudesse ser fadista.

Porquê?

O fado é muito bonito. Está tudo ali dentro: a tragédia, o amor. É lindíssimo. Eu gosto de Portugal. Sabe, nunca vimos muito os países onde vamos porque não os visitamos de forma turística. Vamos lá trabalhar e vamos embora muito rapidamente. Mas quando se sente a essência das pessoas que vão aos espetáculos, e em cada país é único, há uma intimidade desse ponto de vista. É uma pequena e fechada comunidade. Sempre que estou num concerto há uma intimidade, e isso não muda.

“Nunca poderia pretender ser fadista porque não nasci na cultura, mas posso fazer peças de músicas em contexto abstrato, uma celebração do fado sem ser fado”

Trabalha com múltiplas influências, gostava de trabalhar com fado?

Nunca fiz isso no sentido académico, mas posso pretender ser uma fadista à minha maneira. Posso pegar no que ouço e como me toca quando ouço fado e penso que consigo fazer isto. Não é fado, mas é inspirado. Foi assim que ouvi as Bulgarian Voices e criei as minhas músicas. Nada é verdadeiramente original na vida, nós tocamos, criamos, somos libertados, somos inspirados, apaixonados e todas estas coisas nos dão uma razão para queremos viver. Nunca poderia pretender ser fadista porque não nasci na cultura, mas posso fazer peças de músicas em contexto abstrato, uma celebração do fado sem ser fado.

“Quero trabalhar com todos os músicos, não tenho preferências, apenas quero fazê-lo com pessoas que o querem tal como eu, sentir e que se sintam excitados por fazerem música”

Podemos imaginar a possibilidade de um projeto?

(Risos) Não seria justo para as pessoas que são tradicionalmente desta área. Eu sou o fantasma dos bastidores. É inspiração. Colaborar com outras pessoas é tão importante como atravessar estas fronteiras culturais de uma forma abstrata. De certa forma, podemos, juntos, encontrar uma conexão única, partilhá-la com outros, fora das caixas da política e de outras, ser apenas humano. É uma experiência humanitária. Quero trabalhar com todos os músicos, não tenho preferências, apenas quero fazê-lo com pessoas que o querem tal como eu, sentir e que se sintam excitados por fazerem música.

Lançou Exaudia, Burn, tem mais dois trabalhors em curso? Que projetos tem e o que quer explorar em breve?

Estou a a trabalhar em muitas coisas diferentes. Estou a fazer um pequeno filme, a trabalhar com os músicos que me mandaram peças para eu cantar, e creio que esta é verdadeiramente a minha atividade preferida. Gosto do facto de pessoas desconhecidas entrarem em contacto comigo e perguntarem-me: ‘quer cantar na minha peça?’ E depois vemos o que se vê. Isto é o que mais gosto.

“Quero ir à procura da eletricidade que existe entre nós”, diz Lisa Gerrard

A cantora e compositora Jules Maxwell dão o primeiro concerto em Portugal a 19 de novembro no Auditório de Espinho. Segue-se o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a 21, e a Casa da Música no Porto a 23.

[Fotografia: Divulgação]
Burn seguirá depois para o Teatro Municipal de Guarda a 25, o CAE – Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz a 27, o Theatro Circo de Braga a 29 e, por fim, o CAE – Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre a 30 de novembro.

 

Lançaram este projeto há um ano e meio antes, há muito pelo meio. Como será estarem juntos de novo?

Trabalhei com o Jules nos Dead Can Dance, ele estava nas teclas comigo e com o Brendan [Perry, cofundador do projeto com Lisa Gerrard]. A questão não está no intervalo de tempo entre mim e o Jules, mas na forma como o trabalho foi construído originalmente. Normalmente, os músicos estão juntos numa sala a escreverem peças lado a lado. Aqui não foi nada assim. Jules veio à Austrália, estava a trabalhar comigo no projeto com The Mistery of the Bulgarian Voices [em 2015], e nesse período recolheu imenso material, as vozes, que decidiu que iria torna essas vozes em Burn. Ou seja, este trabalho não nasceu nesse ambiente em que tudo está ligado e tem uma intimidade de improviso e interação. Estou a ser mesmo honesta, não sei se o Jules apreciará (sorriso). Mas foi mesmo assim que aconteceu. Ele esteve comigo, foi embora, levou as Bulgarian Voices e, de repente, havia ainda imenso material e perguntou-me se eu me importava que ele usasse? E eu disse: ‘claro, usa, parece-me fantástico.’ Ele fez peças à volta as músicas. Agora, é estranho para mim porque não tenho âncora. Não sei o que vai acontecer.

Portanto, em Portugal, vai voltar a criar sobre o que já criou?

Sim. Exatamente. Vai ser um novo. É suposto estar a ensaiar estas peças antes de me reunir com o Jules e estou, de alguma forma, a resistir, porque quero ver o que está ali. Quero ir à procura da eletricidade que existe entre nós,

Está a puxar limites?

Sim. Ou apenas a sentir e a tentar ver como a posso levar para o nível seguinte. Portanto, vai ser fantástico. Não vamos estar ali a ter uma repetição de uma conversa que se teve, que não se lembra como. É algo novo e excitante. Claro que haverá, espero, partes que sejam reconhecíveis devido ao ambiente em que vivem as músicas. Ao mesmo tempo, estou muito inquieta por descobrir o que vai acontecer a seguir. Que evolução vou e vamos assistir aqui. Não é sobre repetir coisas vezes e vezes sem parar, é sobre descobrir novas e frescas formas de desbloquear as mensagens que estão lá e que não foram ouvidas.

Como espera que o público reaja?

Eu apenas vou lá e faço. O público tem uma participação massiva nos nossos espetáculos, com a energia e a magia que acontece. Estou verdadeiramente entusiasmada com estes concertos. É muito importante quando tudo começa a ganhar a própria vida.