Lucy McCormick: “As discotecas gay são a minha igreja”

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Dificilmente se pode considerar escandaloso o espetáculo que a atriz e performer britânica Lucy McCormick traz esta semana a Lisboa e ao Porto. “Triple Threat” é uma peça de teatro burlesca com uma versão cómica da Bíblia e canções de Lady Gaga, Justin Bieber ou Bryan Adams. Inclui cenas de sexo simulado e procura falar de feminismos e minorias sexuais.

Mas a história de Jesus Cristo é apenas “uma desculpa para tudo o resto que se passa em cena”, explica a autora ao Delas.pt. O próprio título é uma ironia: “Triple Threat” é o termo inglês para os artistas que representam, cantam e dançam com mestria, o que contrasta com os desastres técnicos que vemos em cena.

Lucy McCormick tem 31 anos, nasceu em Newcastle, cresceu em Sheffield e vive em Londres desde os 19. Fundou em 2008 o colectivo Get in the Back of the Van, com o qual tem feito criações profissionais de aparência amadora – porque aprecia a máxima punk “faça-você-mesmo”, ou DIY, na sigla em inglês.

Frequentadora de discotecas gay, foi aí que a partir de 2015 começou a fazer performances espalhafatosas inspiradas na Bíblia. A experiência deu origem a este espectáculo de 60 minutos em que também entram dois bailarinos a que chamou Girls Squad (“pelotão de raparigas”).

A estreia foi em agosto do ano passado no festival de teatro alternativo Fringe, em Edimburgo, na Escócia. Os portugueses podem agora vê-la na Culturgest (quinta, 16, a sábado, 18, às 21h30) e na Mala Voadora (domingo, 19, às 19h00).

“Triple Threat” tem origem nas performances que fez em discotecas gay de Londres. Porquê discotecas gay?

Não foi uma escolha deliberada, é o tipo de ambientes que frequento, são as pessoas com quem me dou e por isso era fácil propor-me como performer. Fazia atuações de 10 ou 20 minutos com excertos do Novo Testamento. Interessava-me confrontar as duas realidades. O meu trabalho inclui referências pessoais, embora não seja inteiramente autobiográfico, e vai buscar elementos da cultura pop e da cultura lésbica, gay, bissexual e transgénero (LGBT), ou de outras minorias sexuais e de género.

E por que decidiu juntar esses elementos a episódios da Bíblia, em concreto do Novo Testamento?

O que me interessa na Bíblia são as histórias e a ideia de amor, fé, sofrimento, esperança. Quer nas performances, quer agora neste espetáculo os corpos em cena transmitem uma mensagem “queer” [termo utilizado para descrever comportamentos ou identidades que fogem à norma]. Os corpos dos intérpretes tentam desmascarar certos estereótipos e ideias tradicionais, o que em alguns casos resulta, noutros nem tanto. A imagética foi trabalhada no sentido de por as coisas de pernas para o ar e transmitir uma mensagem “queer”. No fundo, penso que a cultura “queer” e a cultura pop são a minha religião. Ou seja, acho que as discotecas gay são a minha igreja. Levei o Novo Testamento para minha igreja.

Quis desafiar os cristãos?

Algumas pessoas podem sentir que não é assim que se fala da Bíblia, mas não partilho esse ponto de vista. A Bíblia serviu-me de inspiração, gosto da mensagem de fé, de esperança, de amor, tudo isso. Uma mensagem utópica, talvez. É uma narrativa que faz parte da minha cultura e da cultura ocidental, que serve de referência a muitos de nós.

Porque é que, sendo mulher, optou por interpretar Jesus?

O espetáculo resulta do meu interesse pelas políticas “queer” e de género. Não tive em conta se estaria a representar figuras masculinas ou femininas. Jesus também aparece, ainda que por escassos instantes, interpretado por um dos bailarinos, que é homem. Por um lado, quis perceber até que ponto, como mulher, sou capaz de incorporar esta história e esta personagem, até que ponto resulta ou não. Mas se pensar bem, o facto de Jesus ser representado por mim, e por um dos bailarinos, não obedeceu a outro critério que não fosse o lado pragmático de distribuir papéis. “Tu fazes isto, eu faço aquilo”. Neste sentido, é um aspeto sem ligação à temática do género.

Teve reações negativas de algum crente?

Nenhuma. Quando apresentei a peça pela primeira vez, no ano passado, talvez estivesse à espera de alguma controvérsia. De certeza que havia pessoas religiosas no público, mas não senti qualquer retaliação. Até houve um jornal anglicano, “Church Times”, que enviou um jornalista. E ele escreveu uma crítica muito positiva. Fiquei contente por terem percebido que o meu objetivo não era o de subverter a mensagem do Novo Testamento. Na verdade, acho que seria paternalista esperar que os crentes se sentissem ofendidos. É perfeitamente absurda e ridícula a premissa de incluir o Novo Testamento no espetáculo. É uma desculpa para tudo o resto que se passa em cena. Acho que se percebe que o gozo é em torno de mim, não da religião. Não é um espetáculo agressivo, é divertido. Desafia, sim, mas puxa as pessoas para o tema, não as afasta.

Em termos de linguagem artística, como descreve “Triple Threat”?

No início digo ao público o que vai ver, embora esteja a ser irónica. Uso a expressão “trash, step, dub, punk, nu wave, pós-popular, não-binária, experimental, engajada”. É uma performance híbrida, inspirada no teatro, na dança, na performance, na “stand-up comedy”. Faço parte de uma geração de performers que não sentem necessidade de classificar. É uma peça, na essência. Temos três atos, é a estrutura clássica do teatro.

Algumas personagens comunicam com o público como se estivessem a apresentar um programa de entretenimento. Interessa-se pela linguagem televisiva?

Gosto em especial da linguagem da sociedade de consumo, e isso está lá. A ideia de consumirmos coisas por impulso, de nos sentirmos preenchidos pela fama, pelo vazio, pelos concursos de talentos… Foram algumas das referências que utilizei. Claro que encaixar o Novo Testamento, por inteiro, numa hora de espetáculo é um pouco absurdo. Tive de selecionar partes e optei por fazer eu própria várias personagens, o que se torna um pouco ridículo. Tudo isso me agrada.

Há alguns anos, numa entrevista, disse que as suas referências artísticas são Britney Spears, Angelina Jolie e Lindsay Lohan. Ainda pensa assim?

Quando disse isso talvez estivesse apenas a marcar posição em defesa da cultura pop. Digamos que tenho uma filiação pop, sinto muita afinidade por essa estética.

Foi por isso que chamou Girls Squad aos dois bailarinos que contracenam consigo?

É a expressão que [a cantora] Taylor Swift usa para as amigas mais próximas. Neste caso, os bailarinos são ambos homens, o que resulta numa ironia “queer”.

Considera-se uma artista feminista?

Sou, mas não gosto dessa formulação, porque não estou a transmitir uma mensagem nos meus espetáculos. Faço criações feministas, sim, mas também acho que todos os “ismos” são um pouco aborrecidos.