Luís Lobianco: “Não me vejo a sair do Brasil, quero lutar por um país melhor”

Foi pela voz de Maria Bethânia e pela mão de Pedro Abrunhosa – com o tema Balada de Gisberta – que Luís Lobianco, ator no coletivo humorístico brasileiro Porta dos Fundos e atualmente na novela Segundo Sol, se cruzou com a história de Gisberta Salce Júnior.

Este rosto mais conhecido na comédia – mas que sempre andou nos registos dramáticos – esteve em Portugal, em particular no Porto, e foi a todos os locais por onde a transexual brasileira Gisberta viveu e foi assassinada, às mãos de adolescentes, em 2006.

Dez anos depois, nascia uma peça que queria lembrar as “Gisbertas que diariamente morrem no Brasil” e das quais já ninguém fala. Uma peça na qual o ator fala também um pouco de si próprio. Agora, Lobianco traz a história real à cidade da tragédia – 27 e 28 de novembro, no Teatro Sá da Bandeira – e a Lisboa, de 4 a 6 de dezembro, no Teatro Tivoli BBVA.

Um trabalho que esteve em cena no histórico Teatro Rival, no Rio de Janeiro, e que lhe valeu, há cerca de oito meses, protestos, ataques e agressões diretas por parte de manifestantes. Num Brasil que acaba de eleger Jair Bolsonaro, Luís Lobianco, ainda atónito com os resultados, fala já, ao Delas.pt, em perseguição aos artistas e às comunidades pelas quais o ator, de 36 anos, se bate, como a LGBT.

Crê que “há risco” de não voltar a conseguir colocar a peça Gisberta em cena do outro lado do Atlântico, vinca que o humor está sob séria ameaça e que, um qualquer dia destes, ainda o proíbem no Brasil. Sendo o ator reconhecido, em grande medida, pelo trabalho humorístico que desenvolve, esta frase não podia ter sido dita de forma mais séria e sisuda. Afinal, fala numa onda em que as fake news têm sido o rastilho e a explosão.

Traz a tragédia de Gisberta à cidade e ao país onde ela se passou. Como é fazer isso e o que espera?

Tenho uma ligação muito forte a Portugal. A Porta dos Fundos é muito popular e, por isso, fui já algumas vezes – cinco, creio – e vou trabalhar. E todas as vezes que fui fiquei muito emocionado com o público, que conhece e se interessa pelo meu trabalho. Estar aí já é maravilhoso e já vou cheio de alegria e com o coração aberto. Quando estava no Porto, com a peça Portátil, fiz pesquisa e passei por todos os pontos que a Gisberta percorreu: onde viveu e morreu. Fui onde ela morou, onde ela trabalhava, fui às boîtes, fui ao prédio em que aconteceu o crime e fui também ao orfanato, à casa de São José, onde os meninos – que foram condenados – viviam.

Porque fez esse percurso?

Foi fundamental ir a esses lugares porque a experiência presencial, sentir como é, aparece depois em palco. O que me surpreendeu e me motivou a fazer este espetáculo é que, em Portugal, vi que a história de Gisberta é muito mais popular e conhecida do que é aqui, no Brasil. E não é à toa que Portugal tem, hoje, políticas LBGT na sociedade e que o Brasil, ao contrário, é o país que mais mata LGBT no mundo. Aqui, ninguém conhece a história da Gisberta, o que é muito sintomático, diz muito do Brasil. Aqui, a morte LBGT tornou-se uma coisa banal, morrem Gisbertas – como a Gisberta morreu – todos os dias. E é tão comum que já nem é mais notícia nos jornais, ninguém discute.

Já era assim em 2016, quando estreou a peça?

Já era assim nessa altura e tenho a impressão que está a piorar. Hoje, principalmente nestas eleições [das quais Jair Bolsonaro saiu vencedor na segunda volta], a questão da diversidade, da orientação sexual e identidade de género foram exploradas de forma muito irresponsável.

“Nestas eleições, a questão da diversidade, da orientação sexual e identidade de género foram exploradas de forma muito irresponsável”

Que exemplos pode dar?

Muitas fake news. Para combater os candidatos de esquerda, os outros, os representantes desses setores mais conservadores, criaram notícias falsas a dizer que iam existir kits gay nas escolas, para ensinar as crianças a mudarem de género. Enfim, absurdos… E a intenção era apavorar a sociedade, o que criou mais afastamento, mais marginalidade, mais preconceito. E essa história de Gisberta e as consequências do que aconteceu com ela, as transformações operadas em Portugal traz ainda mais significado a este espetáculo. Mais importante é que as pessoas no Brasil – e em Portugal, claro – sintam na pele este fenómeno de empatia. E o teatro consegue isso. Se, com esta história, conseguirmos transformar um pouco as cabeças, já é uma vitória imensa.

Luís Lobianco em cena com a peça ‘Gisberta’ [Fotografia: Aline Macedo]
Há risco de a sua peça Gisberta, tendo em conta as eleições e o novo presidente, não voltar a subir a um palco no Brasil?

Acho que há esse risco. Muitas coisas que estão a acontecer agora – e que se me contassem há dois anos – eu não ia acreditar. Hoje, no Brasil, há realmente uma perseguição dos artistas, principalmente os que estão a refletir e a repercutir este momento e a provocar no público um pensamento crítico. Esta peça fala sobre isso, sobre a descoberta da sexualidade. Conta a história de Gisberta, mas, na verdade, fala de vários temas através dela.

Entre eles?

Falo muito da descoberta da identidade na infância, falo sobre mim, converso com o público e, para muita gente, isso é ameaçador. Criar consciência e lutar contra o preconceito de identidade é muito ameaçador para muita gente. Sei que tenho o privilégio de ser branco, muito conhecido, e sei que, a princípio, a censura não poderia acontecer comigo nesse momento. Mas, as coisas estão tão absurdas que, todos os dias, fico chocado com uma notícia sobre perseguição a artistas.

“Criar consciência e lutar contra o preconceito de identidade é muito ameaçador para muita gente”

Dizia que ser um ator branco, reputado não o colocará na primeira linha da censura. Mas também faz humor e trabalha com matérias LGBT.

O humor salva e, ao mesmo tempo, provoca reflexão. Mas o humor e a parte artística são perseguidos. Tudo o que causa reflexão é mal visto por essas pessoas que querem que todos permaneçam duros e inflexíveis. Antes das eleições, por exemplo, houve um projeto de lei que procurava proibir humor e piadas com política e com os candidatos destas presidenciais, de 2018. Um grupo de humoristas, encabeçado pelo Fábio Porchat [fundador do coletivo Porta dos Fundos], foi a Brasília e conseguiu reverter o diploma. Conseguimos manter o direito de fazer piadas com estes candidatos. Mas por aqui se consegue perceber a situação que estamos a viver. Tudo isto foi cogitado para manter os humoristas calados em 2018. Se não tivéssemos podido fazer o humor nas eleições, nem sei o que teria acontecido. Teria sido insuportável.

“Se não tivéssemos podido fazer o humor nas eleições, nem sei o que teria acontecido. Teria sido insuportável”

Vem aí mais investidas contra os humoristas?

Com essa vitória [de Jair Bolsonaro] eles fortaleceram-se muito. As investidas contra os humoristas vão ser recorrentes, vão existir projetos que tentam controlar e evitar o humor e que vão chegar a Brasília de vez em quando. Num determinado momento, eles vão conseguir.

E o que estão a fazer para combater isto?

A parte boa deste pesadelo é que está a nascer uma força muito grande entre as classes, nunca vi um movimento tão bonito de artistas reunidos, LGBT reunidos, pessoas pretas reunidas, … Porque é a única saída. No fim de semana das eleições, toda a classe artística saiu das suas bolhas e dos seus lugares seguros para ir para outros bairros e para outros lugares e conversar individualmente com as pessoas. O movimento vira-voto foi muito forte e dá uma esperança muito grande.

Sim, mas e depois das eleições?

Tem de continuar. Essa tarefa deve ser contínua. Temos de criar movimentos dentro da sociedade para trazer as pessoas para junto de nós, há um surgimento de uma união que pode ser bonita. Na Esquerda, existe uma tendência em que cada um fica no seu nicho. O gay luta contra a trans, o negro retinto luta contra o outro negro, as mulheres lutam contra gays, e a esquerda fica completamente esfacelada. Agora não é o momento disso, agora é o momento de reunir todas as forças que refletem as questões humanitárias para que criemos narrativas para envolver a sociedade. No Brasil, precisamos de nos unir, se não eles vão passar por cima de nós.

“No Brasil, precisamos de nos unir, se não eles vão passar por cima de nós”

Sair do Brasil é opção?

Pessoalmente, para mim, não é. É ao contrário: esta é a hora de estar no Brasil, de fortalecer os meus grupos, fortalecer a classe artística. Uma vez por semana, eu e os meus amigos artistas estamos juntos, cozinhamos, bebemos, vemos um filme ou não fazemos nada, mas encontramo-nos porque o afeto é muito importante. As redes sociais têm feito muito mal às pessoas, vivem apavoradas com as fake news, têm uma vida horrível. Temos tentado trazer as relações para a vida real. Não me vejo, de verdade, a sair do Brasil, quero lutar por um país melhor para a minha sobrinha e a filha. Tenho a minha família e os meus amigos aqui. Adoro Portugal. Se pudesse, ficaria a maior parte do meu ano aí, mas não a morar. Tenho ido para trabalhar, para passear e para beber vinho verde e tudo mais, mas para mudar esta situação no Brasil, precisamos de estar presentes.

E na rua, a sua vida já mudou por causa desta perseguição política?

Existe uma inflamação, a sociedade está muito dividida, polarizada. Uma parte da sociedade acredita que se pode fazer uma transformação a partir da educação e que deseja um plano radical com livros, outra parte da sociedade está apavorada com a violência e acha que deve reagir, armando-se. No Brasil, temos um embate entre livros e armas. No meio disto, há muita gente que só consome informações prontas e a maioria delas são as fake news, acreditam em tudo o que leem e são pessoas que complemente manipuláveis. Na rua, sentimos essa polarização. As últimas semanas antes da eleição presidencial no Brasil foram insuportáveis porque havia a sensação de que poderia haver uma luta em qualquer esquina, qualquer lugar. Qualquer palavra ou interpretação da cor de camisa poderia criar uma confusão, famílias divididas.

“No Brasil, temos um embate entre livros e armas. No meio disto, há muita gente que só consome informações prontas e a maioria delas são as fake news”

Não deve ter melhorado depois das eleições.

É, e a tendência é para aumentar. Este governo que venceu as eleições cresce muito nessa atmosfera de embate. Tudo é ainda muito recente, tudo é muito inacreditável, ainda estou a olhar para esta realidade, mas, com o tempo vou conseguir entender melhor esta situação.

Imagem de destaque: Fernando Young

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