Margaret Drabble. “O envelhecimento é muito mais fácil para as mulheres”

margaret drabble03
Fotografia: Hugo Amaral

Margaret Drabble nasceu no ano em que começou a II Guerra Mundial. A memória que esta conceituada escritora britânica tem das grandes transformações históricas de que foi contemporânea não ajudam a relativizar a intranquilidade que sente com algumas que ocorrem no presente. “Há dias em que acho que tudo vai passar e voltar ao normal, mas talvez não volte, talvez venha aí a III Guerra Mundial”, diz Margaret Drabble em entrevista ao Delas.pt, a propósito do lançamento do seu mais recente livro ‘Sobe a Maré Negra’ (Quetzal), em Portugal.

Nessas inquietações atuais cabem o Brexit, ou a ascensão da extrema-direita, em alguns países, e, claro, o tema deste livro: a velhice. Em ‘Sob a Maré Negra’, título que corresponde à sua primeira obra com edição portuguesa, o envelhecimento e a proximidade da morte são tratados com delicadeza, humor e até leveza. Talvez porque a vida importa mais quanto maior é a proximidade do seu fim.

Com mais de vinte obras publicadas e uma carreira de cinquenta anos dedicada aos livros, entre romances, ensaios, contos ou biografias, Margaret Drabble confessa que gostava ainda de escrever sobre o estado da Inglaterra atual, o que implicaria um esforço físico, para conhecer de perto a realidade vivida pelos demais, que os seus 80 anos já não lhe permitem. Por isso, espera que outros escrevam esse livro por si para poder lê-lo.

 

A forma como fala do envelhecimento e até da morte, no seu livro, é, ao mesmo tempo, cheia de vida. Não apenas, pelas vidas que as personagens viveram, mas também pela forma como elas olham para elas, nesta fase?

Eu decidi escrever um livro sobre envelhecimento, porque toda a minha geração está a envelhecer, neste momento. Quando são novas, as pessoas pensam que são todas iguais, mas não são. Têm atitudes muito diferentes em relação ao envelhecimento, à morte, à forma como cuidam de si próprias e [quando se tornam mais velhas] estão em condições muito diferentes. Algumas têm muita mobilidade e são ativas, outras já não se conseguem mexer. Achei que era um tema interessante para explorar. E é-me muito próximo.

Acha que quando envelhecemos vemos de forma mais clara essas diferenças – além das diferenças físicas óbvias -, na forma como olhamos para as coisas, para a própria vida?

Penso que à medida que envelhecemos tornamo-nos mais nós próprios, formamos opiniões sobre a forma que a nossa vida tomou, sobre a forma como evoluímos e temos uma perspetiva mais alargada, uma visão mais longa de como a nossa vida foi preenchida. E, por vezes, ela foi cheia de surpresas e desilusões, outras foi melhor do que se supunha. É uma longa narrativa.

O que é mais difícil, digamos assim, no envelhecimento: a perda de capacidades, o facto de se ir tendo cada vez menos tempo de vida ou o arrependimento por não se ter feito aquilo que se queria?

Acho que deve ser muito difícil não se ter feito nada daquilo que se quis, ou ter-se vivido sempre para as outras pessoas, nunca se ter encontrado nada que se quisesse fazer. Acho que é mais fácil se a pessoa sentir que teve uma vida preenchida, que esta foi útil e que se usufruiu dela. Claro que isso também pode tornar mais difícil deixá-la. Porque se gostamos da vida custa-nos deixá-la. Mas todos sabemos que temos de morrer e, na minha opinião, é bom que nos habituemos a essa ideia e vivermos o melhor possível enquanto estamos vivos.

E nesse tempo, se ainda se estiver na posse de todas as faculdades e capacidades, a pessoa pode aproveitar ainda para viver mais de acordo com aquilo que realmente é…

Sim, penso que a pessoa pode fazer isso, já não tem de lutar para singrar na vida, porque ou se foi bem-sucedido ou não – é demasiado tarde para o conseguir. Por isso, há que decidir o que é realmente importante, as coisas que se querem manter ou aquilo que nunca mais se quer voltar a fazer. Acho que muitas das pessoas de idade sentem mais facilidade em dizer não. Quando somos novos queremos seguir as regras, quando chegamos à meia-idade queremos agradar a toda a gente e à medida que se vai envelhecendo é mais fácil dizer não. E acho que é importante aprendermos a dizer não.

É mais difícil para uma mulher envelhecer graciosamente? Recentemente, houve um escritor francês de meia-idade a dizer que as mulheres a partir dos 50 já não são atraentes…

Ah sim, eu li isso.

Além disso, a mulher passa por grandes mudanças físicas e hormonais nessa idade, como a menopausa, por exemplo. É realmente mais difícil o envelhecimento nas mulheres?

Não, penso que é muito mais fácil para as mulheres. Esse escritor está totalmente errado. Ele vê a vida inteiramente sob o seu ponto de vista, sob aquilo que ele aprecia, onde se inclui o seu desejo de gostar de mulheres jovens. Tudo bem, há muitas mulheres jovens por aí. Mas as mulheres mais velhas não o querem a ele. Acho que os homens têm mais medo de envelhecer, se ressentem mais na sua masculinidade, daí, como é o caso dele, querem mulheres jovens, que lhes proporcionem uma espécie de sangue novo. E as mulheres não sentem isso. Acho que houve um tempo em que as mulheres viviam totalmente focadas na sua beleza e aí era difícil envelhecer, porque a beleza vai desaparecendo e elas tornam-se numa mulher velha num vestido preto. Mas já não é assim e as mulheres atualmente têm muito mais opções para viver uma vida plena, quando são novas, na meia-idade e quando são velhas. O mundo hoje está cheio de mulheres mais velhas que têm uma vida cheia, que viajam, que abraçam novos desafios, às vezes com as suas famílias, outras vezes trilhando um caminho completamente diferente. Enquanto os homens têm mais dificuldade em adaptar-se à reforma, ao deixarem de trabalhar, de ter a sensação de que são o centro do mundo que os rodeia. As mulheres adaptam-se melhor à sensação de não serem esse centro, simplesmente encontram novas maneiras de serem elas.

Margaret Drabble esteve em Lisboa, no final de janeiro, para promover o seu mais recente livro e o primeiro editado em Portugal, ‘Sobe a Maré Negra’ [Fotografia: Hugo Amaral]

Até que ponto este livro é inspirado em acontecimentos reais?

Uma boa parte é inspirada, sim. Os acontecimentos são quase todos inventados, mas as personagens, aquilo por que passam e alguma da pesquisa que fiz a casas e a lares de idosos é real. Eu fiz de conta que era mesmo a Fran, desta história, e fui a esses sítios e fiz algumas das coisas que ela faz. Isso foi a parte da vida real que alimenta o livro. E há partes de personagens que são baseadas em pessoas que conheci. A personagem da Theresa é baseada numa amiga minha que morreu de cancro há alguns ano, que era uma mulher notável. Quando ela esteve muito doente, falámos muito sobre morte e ela era católica. Teve uma vida muito livre e depois voltou-se para a religião outra vez. E era muito interessante falar com ela sobre a vida depois da morte – em parte acreditava que existia, e em parte não. Ela aceitava a morte e, para quem é profundamente religioso, talvez seja mais fácil aceitá-lo. Mas eu simplesmente admirava a sua coragem e a maneira como ela falava aos amigos e à família sobre o que lhe estava a acontecer. No final, mais do que ser corajosa, ela parecia estar a ser ela própria. Foi um exemplo para mim. Ela não tinha medo.

As pessoas tornam-se mais ligadas à espiritualidade quando enfrentam a proximidade da morte, mesmo que nunca o tenham sido?

Muitas pessoas sim, porque antes disso as pessoas não colocam a si próprias, questões como qual é o propósito, o significado da sua vida. E deixem de ter interesse em questões como se vão ou não ter um bom emprego, se vão ter dinheiro, porque isso já não se aplica. Então olham para as grandes questões e isso pode levá-las ou a ser mais espirituais ou a ficarem profundamente deprimidas – e acho que muitas pessoas de idade ficam deprimidas porque estão sós. Mas penso que o sentimento de proximidade espiritual ou de proximidade a Deus pode tornar-se, nessa fase, mais importante.

“Quando somos novos queremos seguir as regras, quando chegamos à meia-idade queremos agradar a toda a gente e à medida que se vai envelhecendo é mais fácil dizer não”.

No seu romance refere uma das obras de José Saramago, a ‘Jangada de Pedra’. Suponho que seja difícil não o mencionar quando parte deste livro fala de Lanzarote. Mas quando o refere é para dizer que uma das personagens está com dificuldade em começar a ler a escrita do Saramago. Há quem diga que é uma escrita difícil. Também é dessa opinião?

Eu gosto muito de Saramago. Não li tudo dele. O que li primeiro foi ‘O Ensaio sobre a Cegueira’ e depois li outros. E a ‘Jangada de Pedra’ é um livro fascinante, é uma especulação estranha mas interessante. Não é exatamente ficção científica, mas é muito ousada na forma de imaginar aquilo que pode ser. A personagem do meu livro não está habituada a ler esse tipo de obras e não gosta dessas doses de irrealismo. Ele acha que [a ‘Jangada de Pedra’] é um livro pesado. Mas eu não acho os livros do Saramago pesados, acho-os muito agradáveis. E, claro, depois há as paisagens de Lanzarote e das Canárias, onde fomos durante muitos anos, na altura do inverno, e que são muito bonitas. Fiquei muito contente por poder escrever sobre esse lugar, porque gostei muito de ter estado lá.

Em ‘Sobe a Maré Negra’ aborda também problemáticas sociais, na perspetiva da velhice. Uma delas é o sistema nacional de saúde, neste caso do Reino Unido. E compara-o com o de Espanha, mais concretamente o das Canárias. Estas questões surgiram no processo de escrita do livro ou era algo de que queria mesmo falar?

É um assunto muito, muito importante. Algumas pessoas da minha idade e mais velhas do eu que têm dificuldades em obter apoio familiar e doméstico, preocupam-se com o facto de os filhos terem de cuidar delas, com os serviços sociais e o sistema de saúde, que são muito importantes para as pessoas quando se tem crianças, quando os filhos são pequenos, e depois passam-se anos sem que elas pensem neles. Quando envelhecem, voltam a pensar nesses serviços e começam a pensar quanto lhes vai custar serem velhas, quanto lhes custarão os cuidados privados, o que é que o Estado fará por elas e se o fará bem ou mal. Há muitos escândalos na Inglaterra relacionados com lares mal geridos e acredito que Portugal, que todos os países tenham este problema, que tem a ver com a estrutura demográfica atual. Muita gente envelhecida e pouca gente jovem e disposta a trabalhar nessas áreas da prestação de cuidados. Portanto, é um problema sério e pareceu-me que era necessário chamar a atenção para ele. E também quis mostrar que há sítios que são geridos muito bem.

As mulheres mais velhas são, de resto, quem muitas vezes cuida de idosos, e as estatísticas, tanto no Reino Unido como em Portugal, mostram que as mulheres vivem mais anos que os homens, mas que esses anos são vividos sem saúde. Como é que a sociedade as pode ou deve ajudar?

Deve dar mais dinheiro aos serviços sociais, ter pessoas nesses serviços que vão ao domicílio de pessoas idosas, uma ou duas hora, por dia, certificando-se que está tudo bem. Costumávamos ter um sistema maravilhoso, na Inglaterra, chamado ‘Meals on Wheels’, que era um serviço gerido pelas câmaras e que consistia numa carrinha que levava refeições a casa das pessoas, aqueciam-nas ou, pelo menos, certificavam-se que as pessoas as comiam e isso foi cortado. Creio que nenhuma câmara consegue fazer isso atualmente, porque não há verbas. Mas o que pode ser mais importante do que garantir que os idosos têm o que comer?

“Quando envelhecem, as pessoas começam a pensar quanto lhes vai custar serem velhas, quanto lhes custarão os cuidados privados, o que é que o Estado fará por elas.”

Como é que uma pessoa que tenha vivido tantos anos e que tenha passado por grandes transformações sociais e históricas – como guerras mundiais -, olha para as transformações atuais, como o Brexit ou o regresso de ideologias de extrema-direita ao terreno político, por exemplo. Relativiza ou preocupa-se mais?

Não consigo responder a isso, porque um dia acho a primeira, no outro a segunda. Há dias em que acho que tudo vai passar e voltar ao normal, mas talvez não volte, talvez venha aí a III Guerra Mundial. Neste momento, não sabemos. E nunca pensei que a Grã-Bretanha se portasse de forma tão estúpida, nem que se assistisse ao crescimento da extrema-direita na Alemanha, porque Angela Merkel parecia uma líder tão sólida e, no entanto, a extrema-direita está a fazer avanços. Na Grã-Bretanha, sempre achei que tínhamos demasiado senso, que havia demasiado o caminho no meio, mas agora questiono-me sobre isso. A maioria das pessoas que conheço são racionais, mas nas extremidades há pessoas muito, muito loucas. Isso é preocupante. Mas sou uma otimista e acho que o pêndulo vai acabar por se recentrar, só que, neste momento, na Grã-Bretanha tudo é imprevisível.

Essa imprevisibilidade faz com que os britânicos procurem a estabilidade junto da imagem da Família Real?

[Risos] Bom, a Rainha tem 93 anos! Não é bom termos de nos apoiar em alguém que tem 93 anos [risos].

Mas há novos membros, figuras que têm sido, de alguma forma, inspiradoras para muitas pessoas, como a Meghan Markle, a Kate Middleton, William e Harry…

Sim, sim. Mesmo o príncipe Carlos, que já tem 70 anos, é genuinamente bom. É excêntrico, mas não há mal nenhum nisso. Acredita em plantas orgânicas – e por que não? É realmente um homem bom. Só que não acho que a nova geração tenha a solidez da Rainha, para o bem e para o mal. Eles de facto dão à Grã-Bretanha um sentimento de coesão. Mas não penso que seja a solução. O problema, neste momento, é que não temos líderes fortes e racionais. É triste.

Também escreveu livros de não-ficção, um deles sobre a rainha Vitória (‘For Queen and country: Britain in the Victorian age’). Por que é que os membros das famílias reais fascinam tanto as pessoas, de todas as partes do mundo?

E por que gostam da novela interminável da vida da realeza, e dos programas de televisão, dos filmes… Tenho de admitir que eu própria não consigo resistir a alguns deles, porque encontrei a princesa Margarida, uma ou duas vezes – ela conhecia o meu marido -, e, de certa forma, era fascinante ver o outro lado das suas vidas. Ninguém conseguia conhecer a rainha, mas a princesa Margarida queria conhecer toda a gente, por isso tinha-se uma certa noção de como ela era enquanto pessoa. Mas é uma novela e com os membros mais novos é a mesma coisa. Nós queremos saber se a Meghan Markle vai ser absorvida pelas regras da família real ou se vai ter a sua própria vida.

Sobre que assuntos ou temas ainda gostaria de escrever?

Eu adoraria escrever sobre o estado da Inglaterra atual, mas acho que já sou muito velha para isso. Porque para o fazer como deve ser tem de se viajar muito, viajar de forma incógnita, sem se identificar, só observando. E eu estou demasiado velha para isso, não tenho a energia física para fazer todas as coisas que costumava fazer. Por isso, esse tipo de livro não vou escrever, outros terão de o escrever por mim e eu irei lê-los, para saber o que se está a passar.