Mário Zambujal: “As mulheres têm a explosão daqueles países descolonizados”

Já vem a sorrir e ainda nem empurrou a porta do café para o qual estava marcada a entrevista. Só depois descobre quem o espera e, só após isto, é que o jornalista e escritor tira o chapéu. Mário Zambujal não chega a sentar-se na mesa interior, muito menos a tirar o casaco. Ele quer ir para a esplanada – apesar do frio -, para poder estar à vontade para dar continuidade a “hábitos de juventude”.

'Então, Boa Noite'. Livro do escritor e jornalista Mário Zambujal [Fotografia: DR]
‘Então, Boa Noite’. Livro do escritor e jornalista Mário Zambujal [Fotografia: DR]

A conversa de Zambujal com o Delas.pt chegou a propósito do recém-lançado livro Então, Boa Noite [Clube do Autor, €14,50], mas acaba por ser publicada no dia em que o autor e jornalista cumpre 83 anos, esta terça-feira, 5 de março. E a conversa vai completamente para além destes dois factos, segue pelas mulheres, pelo #MeToo, pelo assédio, pelos piropos e por uma relação conjugal de mais de 50 anos. Continua no jornalismo, anda entre a revolução dos cravos e a digital e olha para as notícias falsas.

Um diálogo que corre acompanhado de um comprimido – um martini, no caso de Mário – e um café e um copo com água, e sempre com os gracejos tão caraterísticos do autor. O pretexto foi essencial para a conversa, mas o acaso – essa pergunta sem resposta que Zambujal tanto aprecia – fez o resto nesta entrevista.

Não há um livro que não ande à volta de histórias das mulheres, e o Então, Boa Noite – agora lançado – não é exceção. De todas, qual ou quais mais o encantaram e porquê?

As minhas personagens femininas não são maltratadas. São mulheres bonitas, levam os homens a perder a cabeça e essas coisas todas, mas também são normalmente inteligentes. Um livro é sempre autobiográfico na medida em que reflete o pensamento do autor, e eu tenho muito boa impressão das mulheres.

Em quê, em particular?

Elas são mais argutas. Houve um longo tempo, uma longa jornada, só para falar em Portugal, em que as mulheres eram colonizadas, colónias dos homens, propriedade deles. Então, vejo e observo, com um certo divertimento, os embaraços da malta masculina com este despertar vigoroso delas, que se acentua de ano para ano. As mulheres têm a explosão daqueles países descolonizados, têm uma energia natural, uma necessidade de expandir a sua nova liberdade e a sua nova capacidade. Outro dia, fui a um notário e só havia mulheres, fui à redação de uma televisão e estava um gajo, só um, numa ilha de mulheres. Grande banhada que a malta está apanhar! (risos) Então, noto esta explosão da vivacidade e da capacidade das mulheres como uma coisa muito marcante nestes tempos.

“Vejo e observo, com um certo divertimento, os embaraços da malta masculina com este despertar vigoroso das mulheres, que se acentua de ano para ano”

É circunstancial ou vem para ficar?

Vem para ficar e para se desenvolver. Porque se virmos que o número de mulheres no ensino universitário ultrapassa o dos rapazes e se repararmos como elas têm uma capacidade, uma energia e até uma sede de se afirmar que demonstra ser superior aos gajos que nasceram com a herança do seu lugar garantido e de domínio, então os homens….bem, nós… estamos um bocado entalados nesta vertigem. Aqui há 40 anos quem é que imaginava que as mulheres chegariam a determinados cargos, ocupariam determinadas funções? É tudo tão recente. Neste livrinho que escrevi há um grupo de raparigas, de mulheres a jantar e não há gajo nenhum. Isso era impossível há 30 anos. E esta nova possibilidade que elas vivem parece-me bem, muito bem. Não uso a palavra libertação porque me parece excessiva, uso a de emancipação porque é a palavra de encontro com o seu verdadeiro estatuto, com o que devem ter. Elas são o ser humano mais bonito, são mais perfeitas. Digo isto e fico um bocado surpreendido com os brados feministas como esta coisa do #MeToo. Parece-me cair numa loucura, de exageros.

Porquê?

Quando vejo que um tipo que há 40 anos apalpou o rabo a uma senhora e que agora querem prendê-lo… por amor de Deus. Isto é uma das coisas mais notórias do ser humano que é a atração dos sexos. E o homem, na sua capacidade de ser dominante e na qual tentava e continuará a ser assim, é mais aguerrido.

Mas não há limites, Mário?

Há, mas não são os limites que muitas vezes se propagam. Violar é uma coisa imperdoável, aliciar é uma conversa de malandro.

“Violar é uma coisa imperdoável, aliciar é uma conversa de malandro”

Apalpar é intrusivo.

Forçá-las é crime, claro. Mas querem pôr o homem na prisão! Eu acho muito bem que os homens continuem a gostar as mulheres e que tenham esta voracidade sexual que faz parte da condição humana, e não só humana.

Dentro do #MeToo o que é que reconhece como denúncias e acusações legítimas?

Ter relações forçadas, sem consentimento, isso não pode acontecer! Qualquer dia os homens têm de fazer um movimento semelhante para dizer que há mulheres que queriam ir para a cama com eles. Também há mulheres malandras.

Uma provocação: Os seus livros estão cheios de personagens malandras. Hoje em dia, se fossem de carne e osso, muitas delas seriam e estariam acusadas de assédio, não?

Pois, agora é fácil ser pela linguagem extremista e disparada de algumas senhoras eu dizer coisas que toda a vida disse, como por exemplo, “estamos bem sentados, mas deitados estávamos melhor”. Dizia essas coisas que eram gracejos, agora hoje em dia assustava-me. Então, o que é isto? Isto são gracejos. Há ainda os madrigais. Tirando a Florbela Espanca, que eu conheça, são sempre os homens que fazem os grandes poemas de amor e desejo. O Bocage tinha sonetos fabulosos de desejo. É preciso saber o que é a natureza humana. O que deu a autoridade ao homem foi a sua capacidade física dominante. Isso agora começa a mudar, hoje já há muitas mulheres no karaté. (risos). Qualquer dia até porrada apanhamos, mas enfim…

“Hoje já há muitas mulheres no karaté (risos). Qualquer dia até porrada apanhamos, mas enfim…”

Mas o Mário anda com medo, que alguma rapariga evoque umas malandrices antigas?

Não. Já não tenho medo. Ohh, venham elas! Só me divirto. Só podem dizer de mim que o galanteio e o gracejo fazem parte da minha comunicação. Olhe, como aquilo que se diz: “Ainda estás melhor do que ontem, acho que nem te quero ver amanhã” (risos). As coisas são ditas como uma cortesia. Dizer que uma mulher está linda, que está fantástica, não é uma coisa para #MeToo, é muitas vezes sincera pelo encantamento sincero pela pessoa, e outras vezes uma cortesia. É algo entre a cultura e a biologia.

Os homens à geral andam sem saber o que fazer?

Já há uma malta desorientada. Sobretudo no meio do cinema e do espetáculo, porque eram universos com relações sexuais, não digo fáceis, mas acessíveis. Havia muita mulher bonita e havia muito gajo com poder, e havia muitas que se queriam deitar com eles porque tinham poder. E havia o contrário. Foram sempre meios, entre aspas, devassos. Vir agora invocar histórias de há 30 anos parece-me um absurdo. Não creio que haja nenhuma mulher, tenho 83 anos, que diga que eu a desrespeitei ou que tenha sido deselegante. Agora, brincadeiras, gracejos, piropos. Isso era uma fábrica.

O piropo agora está criminalizado em Portugal.

Ah, então devia ter aí uma ordem de prisão porque dizia piropos com uma facilidade incrível (risos).

“Devia ter aí uma ordem de prisão porque dizia piropos com uma facilidade incrível”

E agora, ficou mais cauteloso com a lei?

Há uma consciência dos tempos e do meu tempo. Um gajo da minha idade estar a dizer piropos a uma garota, é ridículo. É o medo do ridículo, é a defesa. Embora eu seja agora insuspeito de querer ter alguma coisa com um a miúda de 18 anos, mas só digo piropos à minha neta. Ela é mulher, tem 22 anos, é muito bonita, e tenho a impressão que é muito defensiva em relação a relações confusas. Eu sou do tempo em que abordar uma rapariga era um castigo. Apareciam logo dois cunhados e quatro ou cinco primos a perguntar porque estávamos a olhar. Houve um corte civilizacional, para se utilizar uma palavra recente.

Que corte foi esse?

Não se olhava para as miúdas, era tudo, abordagem, era tremendamente difícil. A malta também sofreu. Hoje, vejo os mais novos, é tudo mais acessível. Nós íamos para a porta da igreja, para ver as raparigas à saída da missa. No meu tempo, havia uma coisa extraordinária de que eu era grande freguês: é que no meio dessa austeridade – era eu adolescente – havia os bailes. E nestes era mesmo para abraçar. Nós, rapazes, vivíamos este fenómeno: levávamos a vida a sermos impedidos de tocar nas raparigas, mas chegava ao dia sacrossanto do baile e já as podíamos abraçar. Até as desconhecidas, meu Deus! É notório como o baile era um oásis no meio do um deserto de possibilidades de contacto. Pedíamos aos gajos das bandas para tocarem músicas lentas, porque isto de andar a fazer ginástica com as raparigas … (risos). Eu era muito namoradeiro, quando me deixavam, quando conseguia, mas já a forma como conheci a minha mulher foi completamente diferente.

“Levávamos a vida a sermos impedidos de tocar nas raparigas, mas chegava ao dia sacrossanto do baile e já as podíamos abraçar. Até as desconhecidas, meu Deus!”

Como foi?

Tenho mais de 50 anos de casado. Um dia a minha irmã Lurdes foi para a escola do Magistério Primário e, quando ela veio do primeiro dia de aulas – e eu tenho mais cinco anos que ela –, perguntei-lhe: ‘Então, como é que estamos lá de coleguinhas?’ Ahh disparate, dizia ela. Mas respondeu-me: “Por acaso, há lá uma moça que é tão bonita e tão simpática, a Gobi…” Então, peguei no caderno da minha irmã e escrevi o nome da rapariga nos mais variados tipos de letra – caixa alta, caixa baixa, letra grande, letra pequena –, e sem a conhecer. E disse à minha irmã: “Amanhã, abres o caderno diante da criatura e ela vai perguntar-te exatamente: ‘o que é que faz o meu nome aí?’ E tu vais-lhe dizer que o teu irmão gostou tanto do nome que rabiscou o caderno. E não faças mais nada”, disse eu à Lurdes.

E como se resolveu o caso?

Daí a tempos, conhecia um primo da tal Gobi… ‘Fernando, sei lá que tens uma prima para mim, escusavas de te incomodar’. Ora, a miúda estava a ser bombardeada de todos os lados por um rapaz que não conhecia, e que era eu. Ela já estava desesperada. Deixei arrastar aquele caldinho quase três meses. Olhe, brincadeiras de que eu gostava muito, e ainda hoje gosto. Paguei caro, 50 e tal anos casado. Veja lá o que dão estas gracinhas (risos). Quando eu era jovem, a minha sedução era por mulher mais velhas, mulheres mesmo. A Gobi, por acaso, é mais nova que eu dois anos. Mas eu nem a conhecia, nem sabia como ela era.

Então e como é que essa relação evoluiu para o casamento?

Um dia, estava ela no cinema com os primos e fui cumprimentá-los. E disse-lhe: ‘Tu deves ser a Gobi, Olá!’ E ela vermelha. Eu estava entusiasmado com o recreio mental que isto tudo tinha sido para mim. E ela era bonita, ainda hoje é uma velha bonita, pá. Depois o namorico pegou normalmente. Era um bocado maluco, mas nunca acabei nenhuma relação incompatibilizado.

“Era um bocado maluco, mas nunca acabei nenhuma relação incompatibilizado”

O Mário e a mulher vivem em casas separadas.

Eu precisava de sossego, de isolamento. Não gosto apenas disso, mas também. Disse que me vinha instalar a casa do meu filho, no Parque das Nações. Tem muitas vantagens e inconvenientes. Primeiro, gosto muito daquela vida da estrada de Benfica. É muito lisboeta, não há rés-do-chão nenhum que não tenha um estabelecimento aberto, é vida. Aqui, no Parque das Nações, é como se vivêssemos a 300 quilómetros de Lisboa. Passaram duas pessoas, é um acontecimento. Mas este sossego também me faz falta.

Usa-o para escrever?

Tenho muita vontade da originalidade, quero que as minhas histórias não sejam parecidas com outros autores ou minhas e faço um apelo à imaginação para criar histórias diferentes, embora sempre baseadas nesta relação entre homem e mulher.

“A minha vontade não é fazer nem melhor, nem pior do que os outros fazem, quero fazer diferente”

Porque é que precisa tanto de escrever sobre a relação de homens e mulheres e não outras histórias, até porque foi jornalista, lidou com a realidade, com os temas duros, com a realidade a superar a ficção, a ficção a superar a realidade…

A minha vontade não é fazer nem melhor, nem pior do que os outros fazem, quero fazer diferente. Ter uma diferença de estilo e de argumentos. Há uma série de problemas de âmbito universal que há muita gente que faz melhor do que eu. Na relação humana, entre homens e mulheres, podemos meter tudo o que quisermos: filosofia, psicologia, economia, política. Tudo cabe numa estreita relação entre duas pessoas. Dá para falar de tudo, para acontecer tudo. Tenho uma interrogação irrespondível que é o acaso. É ele que tem marcado a minha vida.

Por exemplo?

Olhe, se a minha irmã não tivesse ido para aquela escola e se não tivesse lá aquela rapariga, não me tinha casado. Quando escrevia nos jornais, estava no Algarve, tinha 22 anos e antes de A Bola me ir buscar. Depois há o caso, no Diário de Lisboa, ter dito que eu é que era bom para A Bola.

Há um acaso muito peculiar: aquele em que se torna diretor de uma revista de Modas e Bordados e que depois a transforma numa revista chamada Mulher.

Ainda estava dentro de o jornal O Século, já depois do 25 de Abril. Um dia, antes de sair da empresa, o Francisco Sousa Tavares, pai do Miguel Sousa Tavares e então o presidente do Conselho de Administração da Sociedade Nacional de Tipografia, chama-me à administração e, quando chego, o homem estava perdido de riso. Quando me vê, diz-me: “Eh, Zambujal, tenho aqui um petisco para si. As senhoras da Modas & Bordados entraram em guerra interna, sanearam a diretora, só aceitam fazer a revista se você for para diretor”. E eu disse: “Só me faltava isto, trabalhar no ponto de cruz!”

O que fez?

Reuni as senhoras e disse que não ia lá porque não sabia nada daquilo. Havia lá boas jornalistas e que faziam bem a revista. Disse que só mudava duas coisas: o nome Modas &Bordados porque já não pegava. Passou a chamar-se Mulher e, por baixo, para manter a continuidade da revista, continuámos a ter Modas & Bordados. A outra coisa, disse eu: “Maria Lamas foi a senhora que inventou esta revista, foi uma grande combatente da liberdade, está viva em Évora e vai ser diretora honorária.” Meti a redação toda no meu carro, fomos a Évora. A dona Maria Lamas ofereceu-nos chá com palitos la Reine e nós formulamos esse desejo, que ela aceitou. Ela teve uma ação política muito importante e ficou diretora honorária. Ah, e havia uma terceira coisa que pedi às senhoras: “Não me chateiem! Sou chefe de redação de O Século e tenho aqui um caldinho ainda grande aqui dentro para resolver”.

A revista mudou editorialmente?

Foi acompanhando a época na perspetiva e evolução da mulher no pós-25 de Abril. Tanto mais que tínhamos lá mulheres jornalistas com boa formação política e com muito bom trabalho feito.

“A maior parte dos grandes conflitos nascem de um conflitozinho, de uma merda”

Porque é que elas o escolheram?

Porque era um gajo de bom convívio. Era um apagador de fogos. Na verdade, a maior parte dos grandes conflitos nascem de um conflitozinho, de uma merda. Nos tempos conturbados do PREC [Período Revolucionário em Curso] – não gosto da palavra porque foi uma época muito tormentosa contra os instalados – e eu era um instalado, era chefe de redação de O Século, bolas!

O que lhe aconteceu, então?

Na noite de 25 de abril, eu estava na redação, chamei toda a gente para fazer o jornal e fiquei lá até 27. Estava tudo numa euforia. Eram já duas da manhã de 27 para 28, chamei todos para uma reuniãozinha e disse: “Não sei se vocês repararam no essencial. Sou chefe de redação porque fui escolhido por um diretor que foi escolhido pelo patrão. E, se eu bem leio este tempo, não devia ser assim. De modo que, a partir deste momento, não há chefe de redação e vamos eleger um”. E fui eleito pelos jornalistas por unanimidade e aclamação. E disse: “Portanto, agora estão fodidos”, desculpe a expressão. É preciso ver as épocas e os tempos. Nesse pequeno pormenor em que fui eleito está a minha maneira de ver e pensar as situações e de ir compreendendo o momento, o de que as coisas já deveriam ser de outra maneira.

O que fez com essa legitimação?

Continuava na redação e fiquei uns meses, mas aquilo estava a ferro e fogo, com lutas internas, e já não me dava prazer. Numa equipa de união e de capacidade de trabalho e diversão começou a haver problemas e eu fui-me embora. Tenho de ter prazer na vida.

Mudou a linha editorial do jornal?

A linha editorial estava condicionada pela evolução e incerteza política que dominava em Portugal. Ninguém queria saber de mais nada em Portugal do que política. Em minha casa, cheguei a juntar tipos da extrema-esquerda e da extrema-direita em jantares. Podia-se falar de política, mas o primeiro que ofendesse o outro saía pela porta. Isto aconteceu antes e depois da revolução de Abril. Não tenho a mania de retificar o outro.

De regresso ao novo livro Então, Boa Noite, o protagonista tem necessidade de viver de noite. O Mário é este Afonso Júlio?

Sempre fui um bocado freguês da noite, que tem coisas espantosas. A primeira, é que à noite não há moscas. Depois, há noites todos os dias. Em princípio, não há engarrafamentos. Só os de garrafa. Depois, as pessoas não estão vigiadas pelo relógio, ninguém de de estar dentro de 20 minutos num sítio qualquer (risos). A noite é mais libertina e mais libertadora. No meu caso, não fisicamente, mas em muitos outros aspetos mantenho-me fiel aos meus fusos-horários, aos meus costumes e gostos de juventude.

“Sempre fui um bocado freguês da noite, que tem coisas espantosas. A primeira é que à noite não há moscas. Depois, há noites todos os dias”

Ainda sai à noite? Vai ao ginásio?

Não vou ao ginásio, e é uma vergonha. Neste momento, o meu fraco é que tenho vertigens, não desço escadas porque tenho a sensação que vou tombar. Às vezes peço ajuda. À noite, saio com programa específico, em grupo, mas já não quero guiar. Meto-me num táxi e vou ter ao bar combinado. Cultivei, durante muitos anos, o convívio de bar, é um local muito especial, que tem um bocadinho de transgressão. É um sítio onde se vende álcool e onde a animação vai crescendo ao longo da noite por via dessa força exterior que é o copo (risos). Aquilo que parecia mortiço às 11 da noite, às duas da manhã é uma animação. É o efeito bar. Ainda gosto disso. Mas alguns dos meus velhos companheiros já encostaram às boxes, para não falar dos que já morreram estupidamente como o Carlos Pinto Coelho, o Nicolau Breyner.

Preside ao Clube dos Jornalistas. Como olha para as fake news?

Isso vai obrigar a modificações, porventura de alguma austeridade sobre os criadores das fake news. A sociedade acaba sempre por tomar providências sobre as coisas que lhe estão a acontecer. Às vezes tardiamente, às vezes só vê as coisas quando já começaram. Não prevê. E a capacidade de previsão é fundamental para criar boas leis, boas regras.

Como analisa o estado dos jornais e do jornalismo?

Com preocupação, com a verificação de que esta transformação de épocas entrou de várias maneiras. Uma das minhas seduções era ler os jornais ao pequeno-almoço, dois, três. É um mundo que se está a desmoronar. Fui chefe de redação de O Século, o jornal morreu. Fui subchefe de redação do Diário de Lisboa e também morreu. Fui diretor do Mundo Desportivo durante seis meses, morreu. Agora, há outras, há as novas tecnologias. Elas não fazem mal a ninguém, se não fossem outras coisas. O que há é a habituação.

Como analisa este consumo?

Agora olho para os miúdos e não os vejo a pegar, a comprar um jornal. Vejo já que, quando crescerem, não vão comprar, nem ler porque nunca tiveram esses hábitos. Perspetivando o que é esta miudagem de hoje a dez, 15, 20 anos, vê-se que são cidadãos com hábitos diferentes daquele que eu ainda sou.

O jornalismo tem um prazo?

O jornalismo não vai acabar. O que vai ter um fim são as chamadas plataformas. Os próprios livros correm riscos. A leitura em papel é que vai acabar porque custa dinheiro. Vamos sempre parar aí. O papel custa dinheiro, sai caro e não pode concorrer com outra leitura que não custa dinheiro.

“Se o jornalismo desaparecesse, seria um grande golpe na democracia, no conhecimento, na informação e formação públicas”

Mas também, assim, não consegue pagar salários.

Estamos em transformação. O trabalho tem de ser pago, tem de ter uma remuneração. Se o jornalismo desaparecesse, seria um grande golpe na democracia, no conhecimento, na informação e formação públicas e significaria uma coisa aterradora: uma sociedade entregue a quem a assumir. E quem o fizer, criará a sua informação. É um período assustador para a vida dos jornais. Mas o jornalismo não vai acabar.

Imagem de destaque: Global Imagens

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