“Pensei que os meus amigos ficassem chateados por eu matar animais”

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Fotografia de Nancy Macdonald

Louise Gray é uma jornalista britânica freelancer que já fez trabalhos para órgãos de comunicação social como a BBC, The Guardian, The Sunday Times, Country Life, The Spectator e Scottish Field. Filha de agricultores e especialista em temas ambientais, preocupa-se bastante com as alterações climáticas e sabe que a pecuária é uma das atividades mais poluentes em todo o mundo. Por isso, decidiu passar um ano inteiro a comer apenas animais que matava, para saber também qual a origem da carne que comprava nos supermercados.

Depois desse ano desafiante contou toda a experiência no livro The Ethical Carnivore. Numa entrevista ao Delas.pt, Louise revela quais foram os momentos mais difíceis, o que mudou na sua vida após esta experiência e como aprendeu a respeitar os animais e as pessoas que os criam.


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Por que decidiu passar um ano a comer apenas animais mortos por si?
Como muitos jovens, eu estava profundamente preocupada com a mudança climática. Sabia que as emissões da pecuária criam mais gases de efeito estufa do que os aviões, comboios e automóveis juntos. Então pensei que o mais fácil que podia fazer era tornar-me vegetariana, mas também sou filha de um agricultor e sei que muitos animais são criados ao ar livre e abatidos de forma não desumana. Decidi que a única maneira de comer carne e certificar-me de que vinha de uma boa fonte era ser eu a matar o animal. Sei que parece extremo, mas soube que o assunto era importante no minuto em que pensei nele. Os meus amigos e colegas estavam desesperados para saber de onde vinha a carne. Esta experiência deu-me oportunidade de explorar um assunto interessante, que é importante para muitas pessoas em todo o mundo. Não só por o clima estar a mudar, mas por causa de preocupações sobre o bem-estar dos animais e da industrialização da carne.

Foi capaz de cumprir o seu objetivo?
No ano que passei a comer apenas os animais que matei aprendi a assumir a responsabilidade da carne que comemos. Aprendi a pescar. Também visitei quintas e matadouros para descobrir como é gerada a carne. Aprendi a respeitar os animais e as pessoas que os criam. No final do ano passado tinha uma relação muito saudável com a carne. Agora só quero comer carne se souber de onde vem. Sinto que neste ano cumpri os meus objetivos porque não só encontrei forma de ser uma carnívora ética como também incentivei os outros, através do livro, a questionarem de onde vem a sua carne e a adotarem uma dieta mais sustentável.

Então é mesmo possível ser-se um carnívoro ético?
Sim, é e o meu livro prova isso. A ética é o esforço para viver uma vida boa. Não estou a dizer que sou perfeita, mas pelo trabalho difícil de perceber exatamente de onde a carne vem, matando eu própria os animais, posso tomar melhores decisões. Também posso educar outras pessoas através do meu livro. Não estou a dizer que se uma pessoa comer carne tem de ser ela própria a matar os animais, mas estou a dizer que um carnívoro ético não precisa de comer muita carne para perceber exatamente qual a origem.


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Como é que os seus pais e amigos reagiram?
O meu pai foi agricultor e caçador, por isso estava muito contente por ver-me a aprender habilidades de pesca e caça. Ele também ficou surpreendido por ver a filha à procura dessas habilidades. Os meus amigos têm sido incrivelmente solidários. Pensei que eles ficassem chateados por eu estar a matar animais, mas na verdade eles sentiram-se agradecidos por verem alguém a investigar as quintas. Quando lhes servi carne de animais que eu mesma matei, de uma forma sustentável, eles ficaram felizes por comê-la, até mesmo os vegetarianos.

Como foi a primeira vez em que teve de matar um animal para comer?
Foi horrível. Matei um coelho lindo, de pelo branco. Chorei. A caçadora que foi comigo chorou, mas pude acompanhar, todos os dias, os homens e mulheres que me ensinaram a fazê-lo. Eles eram boas pessoas, ligadas à natureza. Eu queria aprender as suas habilidades e isso inspirou-me a continuar a minha jornada. Também senti que podia contar a história daquele coelhinho, podia fazer as pessoas verem como é difícil matar animais e fazê-las respeitar mais a carne.

O processo de aprender a usar uma cana de pesca para pescar e uma arma para caçar foi complicado?
Foi difícil e demorou algum tempo. Qualquer um pode fazê-lo, seja homem ou mulher, mas geralmente é preciso ter paciência. A pesca é sobretudo saber ler o rio. Podes ter uma boa técnica, mas se não perceberes onde estão os peixes ou não souberes escolher o isco certo não vais apanhar nenhum peixe. Para usares uma arma deves mantê-la estável e sobre controlo absoluto para obter um tiro preciso. É uma prática que exige também que controle tanto as suas emoções como o seu corpo. Trata-se de praticar e aprender a prever o movimento do animal. Tive sorte por ter amigos e familiares que sabem pescar e caçar e foi um prazer aprender com eles. Aproximou-me do meu pai e, ao mesmo tempo, fez-me crescer um pouco porque eu tinha de fazer isto à minha maneira. De uma forma geral, a experiência ensinou-me a ter muito mais confiança em mim mesma. Senti-me fortalecida por ser capaz de pescar, disparar e trazer comida para a mesa, especialmente por ser mulher. A necessidade de dar e de nos sentirmos satisfeitos com a comida é um sentimento muito universal.


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Comer animais é algo que faz parte do ciclo da vida?
Sim. É natural para os seres humanos comerem animais. Mas acho que, hoje em dia, temos alternativas. É perfeitamente possível adotar uma dieta vegan e ser saudável. Mas isso leva tempo. Tem de se fazer um grande esforço para ter a certeza de que se obtém os nutrientes corretos. Na sociedade atual comer animais é uma escolha e devemos tomar decisões com base no ambiente e bem-estar.

O que foi mais difícil na primeira vez que visitou um matadouro?
A visita ao matadouro foi difícil porque estamos fora de controlo. Podes ver os animais a serem mortos e processados e não tens capacidade para pará-lo. Também é chocante ver a morte a acontecer em grande escala. Parece estranho, mas não foi a morte dos animais e o facto de os ter visto a serem esfolados e massacrados que me transtornou. É muito mais chocante ver a realidade de como a carne é processada em grande escala.

De tudo o que viu, o que mais a chocou?
O primeiro matadouro deixou-me realmente traumatizada, mas depois habituei-me e aprendi a perceber o que estava a acontecer. Sempre quis entender as mulheres que trabalham nesses lugares e aprendi a perceber o que estavam a fazer, a respeitá-las pelo trabalho difícil e importante que tinham. Matar o primeiro coelho também me chateou. Fiquei chocada ao descobrir como é difícil para alguém que come carne assumir a responsabilidade de causar uma morte. Isso é o cerne do livro, esquecemo-nos que é difícil comer carne e, por isso, comemos muita.

Foi difícil passar tanto tempo longe da vida frenética da cidade?
Sim, foi difícil ter de viajar para fora da cidade para entender os agricultores, caçadores e pescadores, mas também foi muito bom ver essas belas paisagens e conhecer pessoas interessantes. Não tens de ir longe para explorar as zonas rurais ou aprender de onde vem a nossa comida. Seria ótimo se mais crianças que vivem nas cidades fossem levadas para as quintas para verem de onde vêm os seus alimentos.

Podemos dizer que, durante esse ano, adotou a dieta do paleolítico?
Não sei. Sou contra a ideia da dieta paleolítica. É de 2016, mas incentiva as pessoas a comer muita carne. Vivemos num mundo onde podemos conseguir que a nossa proteína venha de fontes mais sustentáveis. Uma dieta saudável é equilibrada. É saudável comer alimentos crus, carne, pão e até bolos ocasionalmente, nada disto vai matar-te.


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Depois desta experiência deixou de comer carne?
Como muito menos carne. Sei de onde vem e levo-a mais a sério. Se comer carne, quero saber se vem de uma boa fonte e isso, muitas vezes, é mais caro. Nem sempre há tempo para descobrir se o animal que estamos a comer tinha uma boa vida ou se teve uma boa morte. Gostava de evitar o desperdício. Prefiro comer carne de animais de quintas orgânicas e tento evitar carne de porco barata de fábricas industriais por saber que os animais daí não tiveram uma boa vida. Continuo a comer a carne de animais que eu própria mato sempre que possível.

Não conseguiu adaptar-se a uma alimentação vegetariana. Porquê?
Falta de tempo. É possível ter uma dieta vegetariana saudável, mas é preciso muito tempo para ter a certeza de que obtemos todos os nutrientes certos. Tenho uma vida ocupada e é difícil ser-se completamente vegetariana e tentar incorporar mais plantas na minha dieta. Além disso, gosto de carne. Quero aprender a cozinhar algumas receitas de carne interessantes e raras, da minha cultura no Reino Unido, bem como experimentar outros pratos quando for para o estrangeiro. Assumo a responsabilidade por esses animais que como e tento apreciar a carne. Estou interessada em comida vegetariana e em continuar a aprender sobre culinária vegan. No futuro, espero conseguir comer melhor comida vegetariana e ter uma dieta que implique uma pegada ecológica mais leve no planeta.

O que sente agora quando vai a um supermercado e vê toda aquela carne?
O cheiro massacra-me. Olho mais cuidadosamente para os pacotes antes de comprar e tento evitar carne de fontes com que me sinta desconfortável, como o frango de aviários sobrelotados, e procuro carne de agricultores que gostaria de apoiar. Isso muitas vezes significa comprar menos carne, por ser mais caro. Passo muito mais tempo no corredor dos vegetais.

Como é agora a sua alimentação?

Como menos carne e mais vegetais, que me dão energia. Trata-se tudo de equilíbrio e de preferência pessoal. Todos temos corpos diferentes e devemos descobrir o que funciona para nós, mas não é apenas sobre o que sente fisicamente, também é sobre como nos sentimos mentalmente. Todos nos sentimos bem se comermos alimentos provenientes de uma boa fonte, que não prejudica o meio ambiente. Pessoalmente, acho que comer muitos legumes e pouca carne faz-me sentir bem e com muita energia.

Ficha técnica do livro:

The Ethical Carnivore

The Ethical Carnivore, Louise Gray. Bloomsbury, 9,34 dólares (10,48 euros)