Profissão: Ser ‘ardósia’ na Volta a Portugal em bicicleta

Todas as manhãs, Rita Teixeira, 31 anos, equipa-se a rigor. Veste-se integralmente de vermelho – capacete e tudo – e sobe para a moto, que tem a mesma cor. Não está sozinha. Quem a acompanha na 80ª Volta a Portugal, que termina a 12 de agosto, também usa o mesmo tom. Uma condição que já lhe valeu uma confusão digna de nota e de risos. “Uma vez ouvi um miúdo a gritar à beira da estrada: ‘Oh mãe, olha, o senhor das pizzas vai ali ao lado do pelotão“, revela Rita ao Delas.pt.

Assim que o tiro da partida é dado para os ciclistas que estão em prova na “Grandíssima” – como lhe chama – Rita Teixeira também parte. Pega no giz e na ardósia e começa o trabalho: comunicar aos atletas o que se está a passar na frente da corrida. Informação que recebe no auricular e que vai escrevendo, mostrando e apagando, para repetir o ciclo vezes sem conta durante a etapa. Tudo a cerca de 70 quilómetros à hora.

Foi, aliás, assim que teve de matar a fome quando ela apertava. “Numa etapa muito movimentada, não deu para parar a mota e retirar o lanche da mala. Por isso, pedi uma peça de fruta ao carro de apoio neutro e eles só tinham uma laranja. Pois bem, dei comigo a descascar uma laranja à mão e a comê-la enquanto avançava na corrida, a 70 km/h e segurava a ardósia”, revela. E brinca: “Se há uns anos me dissessem – a mim que sou muito girly, organizada e perfeccionista -que ia comer uma laranja nestas condições, diria certamente que era impossível e que a pessoa estava louca! É caso para dizer, nunca digas nunca!”

“Se há uns anos me dissessem – a mim que sou muito girly, organizada e perfeccionista -que ia comer uma laranja nestas condições, diria que era impossível”

Licenciada em Relações Internacionais e com formação em jornalismo, Rita Teixeira, filha de um ciclista profissional nos anos 60 e 70 e diretor desportivo nos anos 80, há muito que se apaixonou pela modalidade e hoje diz mesmo estar a cumprir “um sonho de criança”.

Conta, aliás, que o destino estava escrito. “Tinha dois anos quando o meu pai abandonou o ciclismo, como Diretor Desportivo, e se afastou da modalidade. Não tenho por isso quaisquer recordações, mas a minha mãe conta que, das poucas corridas a que fui assistir, tinha de me pegar ao colo para que pudesse estar sempre a ver as bicicletas, se não desatava a chorar“.

E se, em 2018, segura na ardósia, Rita conta, no currículo, com trabalho como comissária, ou seja, como árbitra da prova rainha. Uma participação que começou em 2015, exatamente nestas funções. Nas restantes três que se seguiram segurou o painel, numa opção que ainda resiste à tecnologia. “Já há ardósias digitais, mas as provas mais importantes mantêm a original, creio que é por tradição e pelo fator humano”, argumenta.

“A paixão pelo ciclismo está nos meus genes”

Aos cinco, seis anos já olhava para a televisão e sonhava com a possibilidade de um dia estar naquele meio. Desconhecia, porém, as funções que poderia vir a exercer. Mais tarde, já com dez anos, conta que pediu ao pai para assistir a uma chegada da Volta a Loulé. “Estávamos ali perto de férias”, recorda.

“Na adolescência, comecei a pedir ao meu pai para ir ver algumas etapas do Troféu Joaquim Agostinho [o pai de Rita foi colega deste atleta], que percorre as estradas da zona Oeste, onde vivemos”, recorda. E conclui: “Daí eu dizer que esta paixão pelo ciclismo está nos meus genes, porque nem eu, nem a minha irmã mais velha fomos habituadas a ir assistir a provas depois do meu pai se ter afastado da modalidade. Apesar de lá em casa, todos gostarmos muito. Até a minha mãe, que sofre imenso quando vê chegadas ao sprint na televisão”, revela.

A chegada ao mundo das bicicletas surge “de forma muito inesperada”. “Durante dois anos fui jornalista freelancer e estava a acompanhar uma etapa do Circuito Mundial de Surf, em Peniche, quando me apresentaram o responsável pela secção de Desporto da RTP, dirigida por Miguel Barroso. Após alguns minutos de conversa, convidou-me a assistir a uma formação de ciclismo de pista. Na altura, pensei que fosse uma mais-valia para a minha eventual carreira no jornalismo desportivo”, conta.

“o jornalismo entretanto ficou para trás, sem qualquer mágoa ou tristeza”

O que começou por ser formação acabou, um ano depois, num “curso de comissária (árbitro)”. Hoje diz que “o jornalismo entretanto ficou para trás, sem qualquer mágoa ou tristeza”. Rita prefere antes pensar que foi graças a ele que veio parar ao ciclismo “A oportunidade da Volta, surgiu primeiro em 2015, quando fui nomeada para integrar o colégio de comissários na prova”.

Ter um histórico familiar com este peso não é, contudo, assumido como pressão extra. “Não sinto isso, sofro a pressão normal de quem quer desempenhar da melhor forma e ser o mais profissional possível”, reage. “Talvez a ligação familiar ao ciclismo me tenha dado uma perspetiva mais abrangente, compreensiva e de enorme respeito em relação aos atletas. E me tenha dado alguma capacidade de ver o outro lado, o do atleta”.

“É quase como se estivéssemos a assistir a um jogo de futebol”

“Para mim, que adoro ciclismo, é uma experiência única e fantástica, porque estamos mesmo em cima de acontecimento e temos uma visão da corrida in loco. É quase como se estivéssemos a assistir a um jogo de futebol sentados no banco de suplentes”, conta a ardósia da prova”. A ela cabe-lhe “mostrar a(s) diferença(s) de tempo entre a fuga (ciclista ou grupo de ciclistas que circulam na frente da corrida) e os restantes perseguidores (que pode ser o pelotão ou grupos/ciclistas intermédios)”.

Na Volta a Portugal, explica Rita, cabe-lhe anotar “os tempos que o Rádio-Volta -responsável pelas comunicações oficiais durante a corrida e que é ouvido por todos os veículos que circulam na caravana – anuncia, mostrando em seguida essa placa aos ciclistas”. Na prova, explica, “a função é desempenhada por dois ardósias, um circula com os fugitivos e o outro com o pelotão”.

Uma função que, conta, “requer concentração”. “Temos de estar atentos para ouvir os tempos e perceber qual a melhor altura e local para os mostrar”, assegurando que não há interferência ou bloqueio à circulação dos ciclistas e dos veículos em prova ou prejudicar as filmagens durante os diretos.

A maior dificuldade, este ano, deveu-se ao calor. “Temos um fato de motard com proteções que, apesar de também nos proteger do sol, não deixa de ser quente, o que, em conjunto com o calor da mota e do alcatrão, faz um efeito um pouco sauna. Mas lá está, quem corre por gosto, não cansa”.

“Temos um fato de motard com proteções que, apesar de também nos proteger do sol, não deixa de ser quente, o que, em conjunto com o calor da mota e do alcatrão, faz um efeito um pouco sauna”

Resta-lhe a água. “Em média, por estes dias, tenho bebido oito garrafas de 33cl durante a etapa. Depois, aquele extraordinário gesto dos bombeiros e das pessoas, que nos esperam à beira da estrada com mangueiras, tem sido uma excelente ajuda para minimizar os danos do calor. E sobretudo é o carinho das pessoas, que chegam a estar quase uma hora à beira da estrada a aplaudirem, que nos dá aquela motivação extra para resistir ao calor”.

“Felizmente já existem muitas mulheres no ciclismo”

Das provas femininas até à presença de mulheres na modalidade masculina, a “ardósia” revela que não falta representatividade neste desporto. “Temos comissárias (árbitras mulheres)”. Rita Teixeira revela até que “dos cinco árbitros portugueses que são internacionais de ciclismo, duas são mulheres! E a própria organização da Volta tem mulheres em algumas das funções mais importantes“.

Desde 2015, conta ainda esta comissária, “que a função da ardósia foi sempre desempenhada por duas mulheres, por mim e pela minha melhor amiga, que foi mãe de gémeas este ano e por isso foi este ano substituída por um ‘ardósia’.

“Dos cinco árbitros portugueses que são internacionais de ciclismo, duas são mulheres”

Uma prova crescente que vem deitar por terra e desmistificar, nas palavras de Rita, a ideia de que o ciclismo, tal como outras modalidades desportivas, é apenas para homens. E ser mulher no meio de homens não é pensamento que lhe consuma muita energia. “Honestamente, quando estou em prova, quer seja como ardósia ou comissária, não perco muito tempo a pensar nessa questão e não sinto que haja uma distinção especial por ser mulher”.

Rita Teixeira recolhe o “elogio ou uma palavra mais simpática”, mas crê que eles chegam pelo facto de, “apesar dos meus 31 anos, ter cara de miúda (como já me têm dito)”. Mas estas velocidades não se misturam. “Respeito ao máximo a função dos ciclistas, afinal de contas é a sua profissão, é disto que vivem, por isso tento sempre ser o mais profissional possível no desempenho da minha função, seja ela ardósia ou comissária”.

Imagem de destaque: Tony Dias / Global Imagens

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