Arizona proíbe aborto em caso de violação e incesto e ‘repõe’ lei com 160 anos

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[Fotografia: Pexels/Pavel Danilyuk]

O Supremo Tribunal do Arizona determinou esta terça-feira, 9 de abril, que é aplicável uma lei de 1864 que proíbe quase todos os abortos. Recorde-se que o Missouri votou proposta semelhante e apenas uma hora depois da revogação da lei federal Roe v. Wade, em junho de 2022. Nesse momento e segundo o diploma, quem fizesse um aborto incorria num crime de classe B com penas de prisão de cinco a 15 anos. Quem colaborar na interrupções de gravidez também incorria em penas pesadas e que passavam por ver as licenças médicas suspensas ou revogadas.

A lei estadual que estava à espera desta revogação federal – e que tem motivado protestos de celebridades, políticos e anónimos – não exclui gravidezes fruto de violação ou incesto. Ou seja, as raparigas e mulheres que tenham engravidado nestas circunstâncias passam a ser obrigadas a ter os seus filhos. Excetuam-se apenas as emergências médicas que ponham em risco a vida da gestante ou “criem um sério risco de comprometimento físico substancial e irreversível de uma função corporal importante da gestante.

Com cerca de 20 estados a terem tomado medidas anti-aborto nos últimos dois anos, o Arizona radicaliza ainda mais e retira a possibilidade por termo a gravidez que sejam fruto de crime contra as mulheres. Uma decisão simbólica com importantes implicações eleitorais neste estado-chave, a poucos meses das presidenciais nos Estados Unidos.

Esta lei proíbe qualquer aborto desde o momento da conceção, a menos que a vida da mãe esteja em perigo. Violação ou incesto não são consideradas exceções válidas.

Os democratas atacaram imediatamente a decisão, culpando o ex-presidente Donald Trump pela perda do acesso ao aborto depois do Supremo Tribunal federal, remodelado pelas suas três nomeações, ter terminado com o direito nacional ao aborto e permitido leis como a do Arizona, que foi aprovada pela primeira vez em 1864.

A decisão de hoje de reimpor uma lei de uma época em que o Arizona não era um Estado, a Guerra Civil estava em alta e as mulheres nem sequer podiam votar ficará na história como uma mancha no nosso Estado”, alertou a procuradora-geral, a democrata Kris Mayes, em comunicado. Kris Mayes garantiu que os procuradores do seu gabinete não vão aplicar esta lei.

A governadora Katie Hobbs, também democrata, considerou que a decisão “só serve para criar mais caos para mulheres e médicos” do Arizona, apontando a culpa aos republicanos por um “ataque sem fim a direitos básicos”.

Depois de ter permanecido inativa durante décadas, esta lei “é agora aplicável”, de acordo com uma decisão do Supremo Tribunal do Arizona. Os juízes decidiram que nada impede a sua aplicação, uma vez que a proteção constitucional ao aborto foi cancelada em 2022, responsabilizando cada Estado por legislar sobre o assunto.

Embora não se espere que a lei seja aplicada imediatamente, a situação pode mudar com as eleições, pois os procuradores são eleitos nos Estados Unidos.

A decisão dá ao Arizona as leis de aborto mais rígidas dos seis ‘campos de batalha’ em estados que podem decidir o próximo chefe de Estado norte-americano. A Geórgia proíbe o aborto após seis semanas, enquanto Nevada, Wisconsin, Michigan e Pensilvânia permitem abortos até 20 semanas ou mais.

A decisão ocorre um dia depois de Trump, o favorito dos republicanos à corrida à Casa Branca, ter dito que os limites ao aborto deveriam ser deixados para os estados e ter-se recusado a endossar uma proibição nacional, após meses de mensagens contraditórias e especulações.

Os norte-americanos têm apoiado consistentemente leis de aborto mais flexíveis quando a questão é colocada diretamente a eles, inclusive em estados conservadores como Kansas e Kentucky.

No Arizona, as consequências políticas da decisão podem ser extensas. O Presidente Joe Biden (democrata) colocou o direito ao aborto no centro da sua campanha, tal como o candidato democrata ao Senado, Ruben Gallego.

Sublinhe-se que estudos recentes levados a cabo nos Estados Unidos da América vêm indicar que o fim do direito ao aborto, para lá de comprometer a saúde e vida da mãe, pode vir a ter implicações numa das grandes bandeiras de quem quer tirar este direito: a natalidade. Um estudo de final de 2023 indicou que são muitos os homens solteiros até aos 50 anos que já alteram o seu padrão sexual e libido com medo de poderem a vir ser pais fruto de uma gravidez indesejada.

No plano criminal, estima-se em 64.565 gravidezes de mulheres norte-americanas nos últimos dois anos – após a reversão da lei federal – e que terão sido resultado do crime de violação, tendo sido contabilizadas mais de meio milhão de abusos sexuais em igual período.

As estimativas foram publicadas na revista científica JAMA Internal Medicine (cuja síntese pode ser lida aqui) e impressionam. Falamos de 14 estados que reverteram o direito e que, na sua maior parte, não permitem abortos em casos de violação. “Embora cinco destes estados permitam exceções para gravidezes relacionadas com violação, aplicam-se limites rigorosos de duração da gestação e as sobreviventes devem denunciar a violação às autoridades, um requisito que provavelmente desqualificará a maioria das sobreviventes de violação, das quais apenas 21% denunciam a violação à polícia”, lê-se no documento da investigação científica.

A mesma análise, liderada pelo médico e diretor da plataforma de apoio Planned Parenthood do Montana, aponta para o facto de quase metade das gestações na sequência de abuso sexual terem ocorrido no estado do Texas (45%), um dos mais radicais na proibição do aborto. O estudo recorreu a uso de dados de Centros de Controle e Prevenção de Doenças, do Bureau of Justice Statistics e do FBI para criar estas estimativas consideradas “chocantemente altas”.