A compulsão para o exercício é uma doença, chama-se vigorexia. Conheça as histórias de quem se esforça para respeitar os limites do corpo.
Alguns desportistas sofrem de uma perturbação tão grave como a obesidade. É a vigorexia, compulsão para o exercício físico que tem mais que ver com uma imagem distorcida do corpo do que com hábitos de vida saudável. Os vigoréticos sentem grande ansiedade em mostrar o corpo e evitam situações em que possam ser observados ou avaliados.
Muitos fazem do ginásio segunda casa, tão focados em obter uma silhueta perfeita que chegam a provocar lesões a si mesmos. Nos casos mais extremos, recorrem a esteroides anabolizantes e a outras drogas potencialmente fatais para aumentarem o volume muscular.«Isto traduz-se numa preocupação persistente e excessiva, associada a sentimentos de culpa e vergonha, por não se ter o corpo suficientemente forte, grande ou musculado», explica Fernando Lima Magalhães, psicólogo clínico. «Respondem com comportamentos repetitivos como musculação ou corridas, ao ponto de prejudicarem a vida pessoal e profissional – por exemplo, faltando ao trabalho para irem ao ginásio»
Há um conjunto de fatores associados à vigorexia: uma certa disposição genética para pensamentos obsessivos, personalidades perfecionistas, experiências sociais negativas ou bullying podem desencadear o medo excessivo da rejeição ou da desaprovação. Tudo depende, depois, de como cada um vive a atividade física, sem ter necessariamente que ver com a intensidade com que a pratica: correr a maratona porque se gosta é diferente de sumir-se para a casa de banho do emprego para fazer cem flexões de braços quando ninguém está a ver.
Foi em 1993 que o psiquiatra norte-americano Harrison G. Pope, da Faculdade de Medicina de Harvard, Massachusetts, usou pela primeira vez o termo vigorexia ou síndrome de Adónis, numa referência à divindade grega de rara beleza masculina que pôs Afrodite e Perséfone em guerra pelo seu amor.
Pope investigou nove milhões de americanos, que então se exercitavam em ginásios, e aferiu que pelo menos um milhão estaria afetado por um distúrbio emocional responsável por desfasar a imagem real do seu ideal de musculatura, um problema que, regra geral, arranca na adolescência, altura de grande insatisfação com o corpo. As mulheres preferem a estrutura do homem comum, mas a maioria dos homens acredita que o seu próprio corpo devia ter, idealmente, mais 13 quilos do que os que na realidade possui.
Mensagens advogando que um homem verdadeiro tem músculos fortes, ou que a mulher de sucesso é magra e esbelta, são divulgadas e aceites em massa. E isso começa desde os brinquedos (os bonecos heróis são todos musculados) até ao cinema, publicidade e revistas.
Pedro Cruz, analista de mercados de eletricidade, é um desses casos de perfecionismo aplicado a tudo o que faz. A extrema disciplina permitiu-lhe passar de miúdo gordo a homem esculpido, capaz de recusar uma noite de copos para ir nadar na manhã seguinte. O rigor desportivo intensificou-se em 2009, quando deixou de fumar. Depois, a atividade física tornou-se um vício, a ponto de se levantar de madrugada para ir correr mesmo quando está em viagens de férias.
«Gosto que o exercício seja duro, gosto de me superar. Às vezes sinto os músculos muito cansados e, nesses momentos, reduzo a intensidade. Mas não consigo parar», reconhece. Nos dias de semana, Pedro corre dez quilómetros junto ao Tejo ou no Monsanto. Aos fins de semana faz BTT e está agora a aprender a surfar. «Se não faço o meu exercício do dia parece que me falta qualquer coisa, fico inquieto e a acusar excesso de energia.».
Pedro Almeida, personal trainer da academia Treino em Casa , diz que «tal como as vitaminas, o exercício em excesso ou em défice é mau para a saúde. Daí a importância de as pessoas fazerem avaliações físicas regulares (o ideal é uma vez por mês), de modo a perceberem o seu estado físico e terem atenção aos sintomas de sobretreino». Palavra chave: equilíbrio. «O limite é o exercício não estar acima de tudo na vida, mas ser um complemento fundamental para viver melhor. Se focarmos as pessoas no que as faz felizes, adequarmos o programa a cada indivíduo e alinharmos o treino, a alimentação e o repouso, conseguimos fazê-las atingir os seus objetivos sem lhes pôr em causa a saúde.»
Marta Andrade começou a nadar há uma década, após ter sido ginasta até aos 15 anos e passar outros tantos sem fazer exercício. «Foi o meu primeiro grande vício», confessa a investigadora científica. «Comecei por nadar três vezes por semana e cheguei até às seis. Não havia um dia que faltasse, mesmo que estivesse uma trovoada gigantesca e o sofá chamasse por mim. A cabeça não me deixava ficar em casa.»
Mais tarde, em 2011, inseriu o treino localizado com Pedro Almeida na sua prática diária e começou a correr no ano seguinte. Hoje faz natação às quartas e sextas-feiras, corre às terças, quintas e fins de semana, tem a sessão com a Treino em Casa uma vez por semana e nem sempre cumpre as segundas-feiras de descanso.
«Sem dúvida que por vezes exagero. Toda esta atividade física ocupa-me as noites durante a semana, há dias em que chego a casa depois das 23h00. Já deixei de ir a festas de aniversário ou jantares para poder nadar, e comprometo muitas vezes os meus fins de semana para poder correr», admite Marta,
José Pedro Castro, professor de Filosofia, faz, aos 57 anos faz 1500 abdominais, oito quilómetros de corrida e várias repetições disto e daquilo após um dia de trabalho, seis vezes por semana. Ser teimoso também abona a seu favor: o médico recomendou-lhe uma operação a duas artroses na zona dos meniscos internos, incrivelmente dolorosas, e José decidiu que só a faria se não pudesse evitar. Começou então a exercitar-se três vezes por semana no Bootcamp Portugal (treino de fitness ao ar livre baseado no conceito militar) para muscular a zona afetada, aumentou a carga para os seis treinos após partir um pé e hoje só falha quando o rei faz anos.
«Não gosto da palavra vício. Vício é fumar e beber, e o exercício só é vício quando se faz duas a três horas de ginásio e se usa anabolizantes», desfere. Para ele, o Bootcamp é alegria, um lugar de equilíbrio. «Se a maioria das pessoas não faz o mesmo, porque prefere estar à mesa a comer alarvemente, o problema é dela.»
José Guimarães, profissional de marketing digital além de trabalhar na Pro Runner (uma loja de artigos para corrida), não menospreza este efeito aditivo do exercício que, no seu caso, se deve unicamente às endorfinas libertadas no organismo. «Nunca tomei químicos perigosos para melhorar a minha performance», garante o desportista, assumidamente viciado em correr todos os dias.
«Quando comecei a sentir os efeitos do exercício físico constante, uma das primeiras coisas que fiz foi deixar alimentos perigosos. Os suplementos fazem parte da dieta, em particular os multivitamínicos e a proteína, importante para a recuperação muscular», diz José Guimarães.
O plano de treinos de José não só não contempla dias de descanso como inclui dois por dia, seja no ginásio, na piscina, na bicicleta ou na corrida. Em quatro meses perdeu 15 quilos – ficou com 73 – e ganhou uma alma nova ao especializar-se em equipamento, motivação e métodos de treino, que divulga no seu blogue De Sedentário a Maratonista.
Hoje corre maratonas, faz triatlos, trail running (correr em trilhos na natureza) e sonha com o Ironman, um triatlo de fogo que inclui 3,8 km de natação, 180,2 km de ciclismo e 42,2 km de corrida, com tempo limite de 17 horas.
João Duarte, consultor de comunicação, também prefere chamar-lhe um modo de vida. «Nos dias em que faço ginásio ou natação, acordo às 06h45 para estar no local às 07h15, treino uma hora e vou trabalhar. Nos dias de corrida acordo às 06h00, para fazer 20 a 25 quilómetros, e quando tenho viagens de trabalho chego a acordar às 04h00 ou 05h00 para ir correr antes de apanhar o avião. A minha mulher diz que sou maluco mas, se há um dia em que era suposto fazer exercício e não consigo, sinto-me mole, mais irritado e com menos energia.»
Nas férias, João pesquisa ginásios e locais para correr perto dos hotéis, nada 50 minutos diários na praia e faz a alimentação saudável do costume: uma dieta rica em proteínas que ajudam à recuperação muscular (ovos, peixe, carnes brancas), muitas frutas e legumes, poucos hidratos de carbono. Anabolizantes, nem vê-los. O máximo que lhe aconteceu foi ter o corpo a dar sinais de que estava a exagerar, mas nessas alturas diz que reforça a nutrição e abranda a intensidade dos treinos até recuperar. «O limite é sempre algo pessoal e tenho de respeitar essa linha para não cair no prejudicial. A minha motivação é sentir-me bem e só isso é o suficiente.»