Ana Cláudia Arantes: “A morte não é tabu. Tabu é sexo, são as drogas”

Trata a morte por “melhor amiga” e recusa-se a descrevê-la como um tabu porque, pura e simplesmente, não há escolha para ela. Ana Cláudia Arantes é médica, especialista em Cuidados Paliativos e tem estado em Portugal a promover o livro que acaba de editar – A Morte é Um Dia Que Vale a Pena Viver, da Oficina do Livro – e a dar palestras pelo país, e que se estendem até 30 de janeiro.

Ao Delas.pt. a médica brasileira fala do arrependimento em final da vida das mulheres e da natureza do luto a que se votam. Teme que a atual geração de cuidadores – sobretudo mulheres – seja a de futuros arrependidos diante das suas mortes e admite que a eutanásia pode vir a aumentar, tal a incapacidade das pessoas.

Tendo vindo a trabalhar em clínicas privadas, mas também em associações de apoio aos mais carenciados no Brasil, Ana Cláudia Arantes tem visto e conhece por dentro todas as vidas que a morte encerra em si: as diferenças no desaparecimento entre as classes socioeconómicas. Diz que é mais fácil morrer para os pobres e que os ricos têm mais dificuldade em aceitar o final da vida.

Uma verdadeira viagem ao mundo do adeus que quer, acima de tudo, ver cumprido um objetivo: levar as pessoas a viver melhor o tempo de que dispõem.

Tendo em conta a sua experiência e particularizando, do que é que as mulheres mais se arrependem em fim de vida?

De todos, o arrependimento mais delicado e sensível do universo feminino passa por gostar de ter feito escolhas mais verdadeiras para elas próprias e não tanto para os outros.

Elas procuraram agradar a quem?

Às pessoas mais próximas: filho, marido, pais, irmãos. Vamos depois percorrendo as escalas até chegar à sociedade em geral, às convenções de moda, aos comportamentos sociais. Essa necessidade de agradar, de ser aceite, de ser reconhecia e de ser agradecida tem uma nuance muito feminina. Também há homens. Não é que elas apenas se importem com opinião dos outros, mas preocupam-nas o que pensam as pessoas que amam. E estas têm a capacidade de alterar comportamentos.

“O arrependimento mais delicado e sensível do universo feminino passa por gostar de ter feito escolhas mais verdadeiras para elas próprias”

No caso dos homens, por comparação, do que é que eles mais se arrependem em fim de vida?

Gostariam de ter mostrado mais afeto. Na verdade, todos estes arrependimentos decorrem de comportamentos para os quais fomos educados a ter, mas que são vistos como dogmas, como caminhos estruturados nos quais temos de nos encaixar. É mais fácil andar naquele trilho do que abrir um outro caminho.

Libertando-nos desses dois dogmas, todos poderíamos viver melhor e de forma feliz?

A vida fica muito mais bonita se abrirmos mão desses dogmas. Posso escolher agradar, mas tenho de ter consciência de que é isso eu quero. Por exemplo, querer ser escritora, mas a mãe diz que tem de ser médica como a mãe ou avó e que não as pode dececionar. A pessoa acaba por fazer o que não queria. Ora, quando se fazem escolhas para agradar a outros, mudando a vida. Isso é uma coisa muito difícil de lidar.

Com o envelhecimento da população temos cada vez mais cuidadores, pessoas que têm familiares a cargo e que não têm meios, nem recursos e precisam de estar com os familiares em casa, chegam a ter de abdicar do emprego. Com esta quantidade de gente silenciosa que tem uma função que lhes é esperada pela sociedade e com custos próprios, estamos a criar uma geração de arrependidos à beira da morte?

(Suspiro) Sim.

Quais são os perigos para estes cuidadores quando morrerem?

O perigo é a tristeza, o perigo é o medo, o perigo é a morte magoada, pesada. É um fardo que está a vir de frente para essas pessoas.

O que fazer?

O único caminho que vejo é da mudança de perspetiva a partir de agora.

De quem?

De toda a gente: de quem envelhece e de quem cuida. Se a pessoa não tem opção, se não há dinheiro, se se é a única filha, é preciso olhar para esse cuidado com o mesmo respeito que precisa de ter para consigo própria. E diz: ‘Ah, mas eu não consigo!”. Tem de conseguir. Se tem dez minutos para si para o banho, esses dez minutos são só para si e para não pensar em mais nada.

E a sociedade pode criar mecanismos para suprir o desamparo?

A questão toda é que acreditamos que a sociedade é uma entidade à parte da nossa vida, que é um problema dos outros. Mas não: nós fazemos parte. E a primeira exigência tem de ser connosco próprias, para um estado de auto-compaixão, de auto-perceção, de auto-sustentabilidade. Precisamos de olhar parta a nossa vida psíquica, familiar e material e fazê-lo com essa capacidade de sustentabilidade.

Trabalho dos cuidadores informais vale 82 milhões por semana

Podemos exigir que os governos tenham soluções para essas pessoas?

Insisto: nós somos o governo. Nós elegemos, nós estamos ali.

Em Portugal, correu uma petição para a criação do Estatuto do Cuidador que deu entrada no Parlamento em 2016. Desde aí que se tem falado do documento recorrentemente – pelos inclusivamente pelo governo – a legislatura vai fechar e o documento está por aprovar…

Essa questão para mim é muito óbvia. Se criou o Estatuto do Cuidador, se levou para a aprovação e se ficou sentada à porta do governo à espera disso, então é necessário pegar nesse documento, transformá-lo num curso e começar a falar dessa realidade às comunidades. Ir às igrejas, escolas, cursos para cuidadores tendo por base no estatuto que está para ser aprovado. Fala-se com dez pessoas daquela comunidade e, depois, elas tornam-se formadoras. Quando o documento for aprovado, daqui a cinco anos, esta nova atitude já vai estar a acontecer na casa de cada um, na comunidade.

Estas pessoas até querem cuidar dessas pessoas, mas essas pessoas precisam de alternativa, mesmo ao nível de soluções para cuidarem de si próprias.

Uma das coisas mais bonitas que vi acontecer no Brasil foi posta em marcha por um professor universitário de Minas Gerais numa intervenção que fez ao nível dos cuidadores e dentro da rede de suportes do paciente. Ele foi para o Rio de Janeiro, alugou um barraco numa favela e entrou em contacto com as pessoas que estavam doentes naquela favela e que estavam nas suas casas surper-pobres. Aí, começou a identificar os que estavam sozinhos, ia a casa deles e perguntava sobre as redes que cada um tinha. Ele conta uma história de uma senhora que, não sendo idosa, era muito obesa e não conseguia mover-se na cama, tinha a casa muito suja e apenas comia o que lhe davam em casa. Ele descobriu que ela tinha pertencido à escola de Samba e ele foi lá.

E o que sucedeu?

A turma da escola revezou-se para fazer turnos o e cuidar dela, o que já acontece há dois anos.

Mas começaram a ajudar porque souberam do caso ou porque foram chamadas à atenção por alguém e era feio não ajudar?

Porque não souberam. Há a questão social de ficar bem ajudar, mas como não é da família de ninguém… O que está disponível na rede social é algo que está para lá da tomada da decisão jurídica, é uma coisa humana, é possível.

“A morte pertence à humanidade, não pertence ao governo”

Mas porque é que não acontece?

Não acontece ou porque o governo não foi tocado por isso, o legislador pode não ter ninguém que precise de cuidar… Essa questão tem de partir de todos. A morte pertence à humanidade, não pertence ao governo.

Pertencendo à humanidade, não era importante a humanidade política envolver-se?

Sem dúvida, eles também são humanos. Não podem, não conseguem, não são capazes de resolver o problema que se precisa de lidar no dia-a-dia. É que o tempo está a passar enquanto se cuida de um familiar.

Se estamos a criar uma geração de arrependidos, os custos no futuro…

São inviáveis. Mas a bola cresce enquanto cada um não se aperceber que é parte da solução. E isto é uma questão que atinge a todos. Não há diferença nenhuma entre trocar a fralda à mãe rica e à mãe pobre.

Mas há quem possa pagar por esses serviços e não são a maioria.

Essa perceção da perda, do sofrimento e da tristeza não é menos importante para nenhum tipo de pessoa. Acho que mais do que ‘quem não vê, não sente’ existe o ‘quem não vê, provavelmente sente muito mais depois’. Talvez o sofrimento seja tão absurdo que nem passa pela consciência. Se uma pessoa pobre tem uma mãe a cargo, ela tem de ir trabalhar mesmo com a mãe assim para poder pagar o aluguer da casa. Mas está ausente quanto aquela filha que é rica e paga a alguém para cuidar da mãe. Os dois estão ausentes por motivos diferentes, mas é possível que a que trabalhe muito para pagar as contas se sinta mais reconciliada com ela mesma.

Do que nota na sua experiência, há diferença no arrependimento antes da morte entre ricos e pobres?

É muito mais fácil uma pessoa que tem muitas possibilidades de se arrepender do que uma pessoa que tem poucas.

“É muito mais fácil uma pessoa que tem muitas possibilidades de se arrepender do que uma pessoa que tem poucas”

Porquê?

Quando cuido de uma mulher que lava roupa para fora e que cria nove filhos sozinha, ela morre, mas ela sabe que fez o melhor que podia. Se cuido de uma mulher muito rica, muito poderosa, CEO de 50 empresas, e três filhos perdidos na vida, ela olha e pensa: ‘Não consegui ensinar os meus filhos, fracassei’. Quando há muitas opções…

E o arrependimento dos filhos?

Todos têm as suas etapas. Vivemos numa sociedade de manipulação da culpa.

Manipulação da culpa?

A culpa é usada como instrumento de poder. Eu lembro: “sacrifiquei-me por si, abandonei a minha vida e agora sou deixada? Que filha pérfida!” Mas a verdade é que a escolha foi minha, eu é que decidi ter filhos, eu é que decidi cuidar. Portanto, ou se ensina amor aos seus filhos ou então não há obrigação nenhuma de eles cuidarem dos pais. Ou se ensina o amor nas atitudes e na compaixão ou então está a ensinar a fazer negócio. Logo, não ensinou amor, emprestou-o, o que é muito feio.

Como mudar?

Só vai haver solução quando o primeiro filho não for educado na base da culpa, mas na base do amor. Só assim o padrão deixará de se repetir. Ele vai fazer diferente, vai amar os pais porque fizeram o que podiam. E aí não há obrigação nenhuma porque os filhos vão cuidar dos pais porque querem, porque faz parte da estrutura afetiva daquela relação que é cuidar. Se assim for, esse filho ou filha cuidador não será uma pessoa arrependida diante da sua própria morte. Se não, vai ser obrigação ou culpa por abandono. Não vai fazer por amor, mas para ficar bem na fotografia.

“No contexto disponível no Brasil e no âmbito dos cuidados paliativos, é muito melhor morrer pobre”

Tendo trabalhado num hospital privado e numa entidade pública, para classes sociais distintas, a morte é diferente quando se é rico ou se é pobre?

No contexto disponível no Brasil e no âmbito dos cuidados paliativos, é muito melhor morrer pobre.

Porquê?

O serviço público é absurdamente melhor para cuidar das pessoas no fim da vida do que o serviço privado. Aqui, a pessoa paga para alguém lhe dizer que se pode fazer alguma coisa pela sua doença e continua a sofrer muito. Ninguém olha para o seu sofrimento, olham apenas para os seus recursos para pagar os remédios novos e que estão disponíveis.

Dizem-lhe isso?

Quando as pessoas me procuram, sabem que eu sei cuidar do fim da vida. Tenho consultório particular, uma consulta cara, e as pessoas vem de vários estados do país para escutarem orientações para viver bem até que a morte chegue. E elas têm profundos conflitos com outros médicos que querem oferecer tratamentos que prolonguem nada. Não é que aumente a sobrevida, só prolonga a quantidade de gastos que as pessoas vão ter ao pagar por recursos que não vão ter resultado. Há uma dificuldade muito grande para quem tem recursos aceitar o limite da vida. A pessoa que está no serviço público não tem acesso. É raro e são poucos os serviços disponíveis, mas são os melhores.

“ Há uma dificuldade muito grande para quem tem recursos aceitar o limite da vida”

Sendo serviço público, com orçamentos definidos e geralmente, nunca se saberia se aquelas pessoas teriam oportunidade ou não.

Não, é mesmo no final da vida. Não há dúvida para ninguém.

Mas dizer que é melhor morrer pobre não se está, ao mesmo tempo, perante o conformismo?

Mas quando se fala em aceitar morrer, é ridículo. Nenhuma pessoa, nenhuma, tem a opção de não morrer. As pessoas dizem que a morte é um tabu. A morte não é tabu. Tabu é sexo, são as drogas porque isso implica opção de fazer ou não. Na morte não há opção.

Não há opção de durar um pouco mais?

Não há essa opção. Durar por mais tempo diz respeito a ter uma vida feliz. Quando vejo os artigos científicos internacionais em tornos dos Cuidados Paliativos, vê-se que quando eles existem ao mesmo tempo que os tratamentos agressivos para doenças como o cancro, os estudos mostraram que os doentes com Cuidados Paliativos vivem cinco meses a mais. Vai-me dizer que só a quimioterapia é que prolonga a vida? São cinco meses a mais. Você abre mão de cinco meses? Eu não abro. Isto são resultados de estudos em pacientes com cancro e feito em Harvard e foi feito em 2015.

Lidar com a morte no futuro vai ser diferente do que é agora?

Historicamente, ela fazia parte da vida das pessoas. Quando houve uma evolução muito acentuada da medicina e dos recursos de saúde pública, houve uma negação dessa morte. Antes morria-se com 40 anos, agora morre-se com 80. O facto de existir em quatro décadas de diferença deu a impressão a pessoas pouco observadoras que a morte não existe mais. Nesse período, entre os 40 e 80 anos, parece que nunca mais se morre, que a morte foi sequestrada para dentro do hospital e para os Cuidados Intensivos, onde há sempre algo para adiar a morte. O que fez esse ganho foi o saneamento básico e as vacinas, não foi a cura. Nesse período em que a ciência cresceu muito, ela mesma pôs uma venda nos olhos das pessoas perante a morte. Nesses 40 anos não fala sobre o assunto e, quando a morte chega, é um grande choque. Antes, seria possivelmente mais fácil lidar com a morte porque não havia como evitar. Agora, passamos por um período adiar a morte, mas não é possível vencê-la.

A ideia da eterna juventude não leva a que se lide com a morte de forma ainda mais complicada?

Sim, passamos por um momento de negação. Fazemos exercício físico para não morrer. Então, fazemo-lo pela razão errada. Temos de o fazer para viver melhor. Porque quem faz exercício físico, morre na mesma. Podem-se fazer plásticas e ficar com cara de 20 anos, mas por dentro os órgãos têm os mesmos 60 anos. Não há possibilidade de maquilhagem da morte, apenas para a vida. Finge-se que se é feliz, finge-se que se é saudável, mas não se finge a morte. A ideia da morte traz a possibilidade de viver honestamente no sentido material, mas também afetivo, nas relações. Não se pode viver na corrupção do próprio tempo.

“A ideia da morte traz a possibilidade de viver honestamente no sentido material, mas também afetivo, nas relações”

Como assim?

Estamos a roubar o nosso tempo para viver depois. Isso é corrupção. E essa possibilidade não existe porque o tempo é incorruptível. Você pode adiar a sua vida, você não viveu os dias, os fins de semana, as férias, mas o tempo passou. A vida passou. Mas depois diz: ‘agora quero de volta, tenho o tempo, um corpo maravilhoso?’ Mas o funcionamento dos órgãos já tem os anos que tem e depois aparece o cancro. E aí pergunta-se: ‘Porquê comigo?’ Não! A pergunta correta é: ‘Porque não comigo?’

Porque não?

Sim, porque não! Agora começamos a falar sobre isto. O êxito do meu livro no Brasil veio dizer que as pessoas podem não querer falar, mas querem ouvir e ler sobre o assunto porque lhes toca naquilo que elas têm de mais verdadeiro. Nem que seja o medo da morte. A minha proposta no livro é trocar medo por respeito e quando tal se faz, então consegue-se viver um tempo de vida honesta e sem corrupção.

Qual é a relação que a Ana tem com a sua própria morte?

É a de melhor amiga. Ela sabe-me dizer o que é importante e não é, ela consegue abrir-me os olhos para o que eu possa estar a perder o meu tempo, a desperdiça-lo. Não preciso de pensar nisso todos os dias, mas se a tenho como melhor amiga e se me aconselha em situações mais críticas isso é ou não importante? Ela ajuda-me a encontrar essas respostas.

Eutanásia. Falou brevemente no livro, referiu que não praticava e que não é comum, mas os pedidos estão a aumentar ou não?

Na medida da incapacidade das pessoas de terem acesso a cuidados paliativos, a incapacidade de reconhecerem a sua fragilidade e vulnerabilidade, a incapacidade de receber afeto e cuidado é diretamente proporcional aos pedidos. Maior a incapacidade, maior o número de pedidos.

Então, tendo em conta o que falámos, estão e vão aumentar.

Vão aumentar.

Como se resolve isso?

A eutanásia é um assunto que só vai poder ser discutido à altura da sua complexidade quando estivermos num espaço, num país, numa sociedade que tenha a capacidade de oferecer cuidados paliativos a todos os pacientes que estão gravemente doentes. Eles podem dizer: ‘não quero’. Agora, ele não pode ter uma alternativa à vida que corrompa o tempo dele. Só pode ter uma alternativa ao sofrimento dele.

Mas essa sociedade não parece estar mais próxima.

Acredito que não. A tomada de consciência está a acontecer. Nós ouvimos o barulho das árvores a cair, mas não o das sementes que estão a nascer.

Tem mais mulheres ou homens nas suas palestras?

Mais mulheres. Elas têm o perfil de cuidadoras natas. Também há homens e se permitem a demonstrações maravilhosas. Cada vez mais temos mais homens a cuidar. Esse perfil da população que se modifica não no sentido feminino ou masculino, mas mais humano, é um bom caminho que vejo, mas talvez esteja a ser otimista de mais. Para mim, é muito claro que esta consciência está a emergir e não há como travá-la.

Imagem de destaque: Sara Matos /Global Imagens

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