Quase dá vontade de contar aquela história: primeiro vieram buscar os comunistas e eu não disse nada, depois os sociais-democratas, depois os judeus e eu não disse nada e quando me vieram buscar a mim não havia ninguém para protestar. O discurso de Martin Niemöller celebrizou-se ao ponto de lhe conceder um prémio da paz – um Lenine, não um Nobel, é certo.
Anitta, a cantora, já fez declarações políticas contundentes contra a censura quando, em julho de 2017, uma iniciativa popular recolheu 20 mil assinaturas para criminalizar o funk:
“A lei certa deveria ser que todo filho de quem decide nosso futuro fosse obrigado a estudar em uma escola pública sem cursinho particular. Que sua família fosse obrigada a frequentar os hospitais públicos… E não criminalizar uma das poucas formas que essa gente conseguiu pra ganhar a vida, amores… aí não. Não mexe com quem tá quieto. Ou melhor… não mexe com quem tá se virando pra ganhar a vida honestamente diante de tanta desigualdade”
Dando voz aos mais pobres há um ano, e em outras ocasiões em que se afirmou da favela (na verdade a mesma onde nasceu a vereadora assassinada, o Conjunto das Favelas da Maré), gritou pelo empoderamento das mulheres e pelo fim da violência contra elas (e sofreu críticas por isso, sendo acusada de falta de coerência já que a sua exposição do corpo e músicas sexualizadas não parecem, no ver dos críticos, feministas) Anitta foi instigada a tomar uma posição sobre a morte de Marielle Franco. Falou, ou melhor, escreveu no Instagram e o que escreveu foi mais ou menos o mesmo que nada.
“Eu ia fazer um post daqui um tempo… que era quando eu achava que faria sentido pra mim. Mas não tive muita paciência pra aturar o ódio gratuito dos internautas até lá. Então.. se alguém estiver interessado em saber minha opinião sobre o caso Marielle, leia esse texto imaginando que o escrevi daqui 3 meses. / Marielle ainda está presente? Espero que sim, espero que pra sempre. Essa seria a melhor demonstração da frase “o feitiço virou contra o feiticeiro” que já presenciei. Quem achou que calaria uma voz tão alta com um tiro se enganou. Milhões de brasileiros fizeram com que essa morte não fosse em vão e essa voz não se calasse. Eles pensam “daqui um mês o povo esquece”. Não se esqueçam, povo, por favor. Ainda lembramos da juíza Patricia Acioli (morta nas mesmas circunstâncias)?, ainda lembramos do menino João Hélio? Sentimos a dor da perda de cada policial que morre em serviço? Espero que sim. Não me importa se Marielle era de direita, de esquerda, de frente, de costas, lésbica, ou mãe precoce ou sabe lá mais o que. Ninguém merece morrer. Nada justifica que se tire a vida de qualquer pessoa. Acredito que a própria não pediria a morte dos corruptos que denunciava. Pedir justiça é diferente de pedir a morte. Para mim, Anderson, seu motorista, era tão importante quanto ela, pois são todos seres humanos. Se ela não fosse feminista como eu, também teria meus sentimentos, se não fosse favelada como eu, também teria meus sentimentos. De esquerda, direita, hetero, gay, pecador, religioso, o que for… Ninguém merece morrer.”
Acreditemos na boa-vontade de Anitta, na intenção tipo Miss Mundo: desejo a paz e o fim da fome. Amor para todos. “Ninguém merece morrer.” Acreditemos que Anitta não fez por mal a desassociação do contexto em que a morte de Marielle ocorre. Acreditemos que Anitta queria escrever “Ninguém merece ser assassinado pelas suas convicções políticas” em vez de “Ninguém merece morrer”.
O problema do discurso fofinho, sem intenção de ofender, é que ele acaba por neutralizar as circunstâncias. E as circunstâncias são claras: há dois países no Brasil – o da elite que tem comandado os destinos do território e que pouco fez para resgatar da pobreza milhões de brasileiros e o Brasil dos pobres que só não foram ignorados pelo poder político quando o PT foi governo e possibilitou, por exemplo, que milhares de favelados chegassem à Universidade.
Marielle Franco era uma delas e usou o curso de sociologia e os instrumentos que a educação formal superior lhe deu para ter uma voz audível e operar mudanças políticas neste país dos pobres. Marielle nem sequer era do PT – pertencia a um partido dissidente formado na sequência dos escândalos de corrupção que abalaram o partido de Lula e Dilma, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), até agora sem nenhuma acusação de trocas de favores – e isto seguramente irritava a elite.
Marielle é morta, assassinada, a tiro, com violência, depois de ter estado no debate Jovens Negras Movendo Estruturas. Marielle queria mover o mundo. Quem não queria que o mundo mudasse, que o Brasil dos dois países mudasse, tratou de a eliminar da forma mais básica: Matou-a. Marielle há de morrer um bocadinho mais de cada vez que um de nós contemporize a sua morte. A democracia e a liberdade de expressão hão de morrer de cada vez que cada cidadão proferir um discurso fofinho e conciliador quando os benefícios de uma morte estão à vista. Os benefícios vão para o Brasil da elite que não quer que o sistema de privilégios mude, que não quer partilhar o quinhão de riqueza com que nasceu.
Não tomar uma posição é também tomar uma posição – na política como na vida. Anitta já devia saber que “foi sem querer” ou “não tive a intenção” magoa, fere, tem consequências. Anitta retirou o discurso do ar, mas ele fica colado à sua pele.
O discurso do nada e “as senhoras dos coraçõezinhos”, como escrevia Ferreira Fernandes na Notícias Magazine, têm uma consequência clara: dão espaço para que o discurso do ódio cresça, para que a mentira cresça, em todos os espaços em branco em que não seja escrito que o assassinato de Marielle teve uma motivação política.
Um dia, hão de vir buscar-nos aos que não falámos, aos que relativizámos os factos. Nesse dia não haverá ninguém para protestar.