O filme ‘Menina’ é a primeira longa-metragem de Cristina Pinheiro e estreia-se esta quinta-feira, 25 de abril, nos cinemas nacionais, com Nuno Lopes, Beatriz Batarda e pequena Naomi Biton (a menina), nos principais papéis. A realizadora de 47 anos, é filha de pais portugueses que emigraram para França, durante a ditadura.

Nasceu em Tours, bem diferente da zona onde rodou o filme, na região de Marselha, que apoiou financeiramente a produção, mas que a obrigou a reescrever o guião e a mudar os cenários da narrativa para um lugar onde o sol e mar dominam – uma imagem não tão distante assim da paisagem portuguesa, mas bem diferente do glamour da Côte d’Azur. Nessa zona popular e fabril, encravada algures no sul de França encontrou imigrantes portugueses que lhe permitiram contar a história que queria: a sua, e a da divisão identitária, com o distanciamento fornecido pelos olhos de uma menina. Veja o trailer do filme, acima, e leia, no texto abaixo, a entrevista da realizadora ao Delas.pt

Alterou o guião da sua história porque acabou por filmar numa localidade do sul de França, ainda que operária e fabril. Encontrou emigração portuguesa aí ou adaptou essa parte?

Sim, sim, encontrei. Para mim era importante ter uma realidade histórica, então fiz pesquisa e concluí que houve uma parte considerável de imigração portuguesa. Há mesmo uma cidade, que já não me lembro como se chama, onde há muitos, muitos portugueses. Essa realidade existia e para mim isso era mesmo importante. Não queria falar de uma imigração que não existe.

Falando em realidade histórica, este filme começa com o 25 de abril de 1974 e estreia em Portugal este 25 de abril.

Sim. Que giro!

Como é que se sente com essa coincidência?

O filme sair aqui em Portugal é um presente, sair no dia 25 de abril é um super presente. Para mim é como se fosse Natal. É uma data muito importante e muito simbólica. Já a herdei dos meus pais, eles já não estão cá fisicamente, mas agora estão com este filme. Agora a história deles vai ser conhecida de todos e a história deles é a história de todos os imigrantes, com ou sem bebida, com ou sem violência, com mais ou menos solidão. Para mim esta é a história de todos os portugueses, porque aqui em Portugal, penso que cada família tem alguém emigrado.

Esta história é inspirada nos seus pais. Mas até que ponto?

Quando o meu pai morreu comecei a criar uma história, a questionar a relação pai e filha, uma filha francesa e um pai português…E comecei a trabalhar num guião. Depois morreu a minha mãe e pensei que talvez quisesse antes falar das minhas raízes, do que sou. Quando perdi a minha mãe, perdi mais que a minha mãe.

Perdeu a sua identidade?

Perdi a minha identidade, é isso mesmo. Então recomecei a trabalhar no guião e a falar da imigração, do exílio. Fui deixando as coisas portuguesas virem até mim. Eu não escrevo muito em português, mas sabia exatamente quais são as palavras iam ser em português e quais seriam em francês. E era uma ginástica que fazia muito bem, sabia exatamente porque é que uma dada personagem dizia certas coisas, em francês, e porque é que no meio de uma frase podia passar ao português.

Eram assim que os seus pais falavam consigo, como está no filme?

Sim. A Beatriz Batarda fala muito bem francês. No filme, ela é analfabeta, mas para mim era importante que ela falasse bem francês porque como a personagem não sabe ler, nem sabe escrever, a única maneira de comunicar que ela tem é falar. A minha mãe falava muito bem francês e o meu pai não falava nada de francês, porque não precisava. Ele sabia ler francês mas não falava muito. Com o Nuno Lopes também era um pouco assim – ele falava francês, mas agora fala melhor. E mesmo a relação de casal, no filme, é perfeita. Eles conhecem-se bem e tem uma intimidade que é perfeita para o filme.

Cristina Pinheiro sente-se francesa e portuguesa, entre outras definições. O seu filme começa com o 25 de Abril de 1974 e termina com as celebrações da Revolução Francesa, a 14 de julho
(Diana Quintela / Global Imagens)

 

Voltando um pouco atrás. Este filme é totalmente biográfico ou também tem situações ficcionadas?

Sim, tem ficção, mas 90% é autobiográfico. Só que é a minha interpretação das minhas recordações. É uma maneira de reescrever a minha memória. Estou sempre escondida atrás de Luísa [a menina, filha, representada pela atriz francesa Naomi Biton]. Por isso, há duas maneiras de ler o filme: olhar para a Luísa criança, ou para uma Luísa mais adulta. Eu precisei desse distanciamento, como se viajasse numa recordação.

Por que é que quis começar o filme com o 25 de abril?

Era para simbolizar o começar de alguma coisa. A revolução portuguesa, para o filme, era uma maneira de falar das histórias de emigrantes que saíram porque não lhes era possível viver em ditadura. Esse é um lado. Mas eu também queria começar o filme de forma a que este pudesse dizer ao público: ‘Olha, estamos em Portugal’. [No início] só há portugueses, só se fala português…

Sim, o início parece ser passado em Portugal.

Sim, há várias pessoas que me disseram que o princípio do filme se passa em Portugal. Não, não se passa em Portugal. Há coisas na decoração que nos diz que não estamos em Portugal. Mas de facto eu queria esconder as minhas intenções, como realizadora, nessa sequência inicial, tanto que disse à Naomi que não falaria nessa sequência, porque só se fala em português. Mas também queria dizer com ela que a partir desse momento ia passar-se algo.

Também há uma revolução na vida daquela família.

Sim. Vão acontecer coisas e a vida já não vai ser a mesma. É por isso também que há uma figura que eu chamo a bruxa, que é uma mulher mais velha, vestida de preto, que simbolizava igualmente esse Portugal velho, agoirento e que dá lugar a uma outra época, a outras pessoas que querem outras coisas.

Como é que os seus pais viveram essa transição, essa revolução, à distância? Pensaram em voltar, por exemplo?

A questão de voltar está sempre presente. Não há nenhum imigrante que não se pergunte se volta ou não volta. E os meus pais sempre colocaram essa questão. É por isso também que a personagem do Nuno Lopes um dia quer voltar e dois dias depois diz que não volta a pôr os pés em Portugal, um dia é a França que é um país de merda e noutro dia é Portugal que é um país de merda. Ele já não sabe. E com a personagem da Beatriz Batarda é a mesma coisa, ela precisa de se agarrar a esse sonho de um dia ir a Portugal outra vez. Mas porque é que vai para Portugal se o filho e a filha estão ali, em França? As raízes dela são os filhos e a deles está no país de acolhimento.

Mas atualmente parece também haver um interesse da sua geração e da seguinte em redescobrir a terra dos pais. Porquê?

Porque os portugueses calam-se muito, são muito discretos. A nossa geração tem essa necessidade de saber mais. Eu vejo, por exemplo, pelas minhas amigas descendentes de argelinos que não têm problemas em falar da imigração das suas famílias, em França. Por que é que nós, portugueses, temos problemas em falar disso? Mas há uma coisa que eu não queria e não quero com o meu filme: em França – não sei se também é assim em Portugal -, há tendência para arrumar as coisas em gavetas. Na gaveta da imigração portuguesa e da comunidade portuguesa, se se fizer um filme, este tem de ser engraçado, uma caricatura. Já se for a gaveta argelina não, mesmo que os descendentes de imigrantes argelinos queiram fazer comédia quase que não podem.

Há um estereótipo em relação ao tipo de filme que se deve fazer consoante a comunidade?

Penso que é por isso que os franceses ficaram interessados no meu filme, porque muitos tinham amigos portugueses e não deram conta que eles tivessem essa dor de não dizerem nada, de dizerem que tudo estava bem. A minha mãe, já no final da sua vida, tinha cerca de 70 anos, foi à Segurança Social francesa e não estava a entender umas coisas que lhe estavam a ser ditas e disse à funcionária que ia pedir a uma amiga que lhe explicasse e essa funcionária disse-lhe para ir ver com uma amiga e que voltasse para o seu país. A minha mãe não ouvia isso há muito tempo, ainda por cima num sítio daqueles, e ela que até nem tinha a língua no bolso ficou sem voz. E eu, apesar de falar bem francês, toda a vida vivi com isso, com a questão de saber onde está o meu lugar, onde está a minha legitimidade. Este filme ajudou-me com isso. Normalmente, os realizadores fazem quatro filmes para fazerem um filme mais pessoal eu quis fazer já esse para marcar o meu lugar, que é este: sou portuguesa, francesa, realizadora, mãe, filha…Sou isso tudo. E este filme levou-me a juntar todos esses lados.

Por que escolheu para o papel de Luísa uma menina francesa, em vez de uma menina lusodescendente?

Porque não encontrei. Vi 70 meninas e essa era a mais parecida comigo. Por isso é que lutei muito para trabalhar com ela. Mostrá-la ao público era mesmo mostrar-me a mim. Ela tinha aquela coisa de parecer uma adulta num rosto quase de bebé, muitas vezes, tinha essa dupla característica que permitia que a história fosse contada por uma menina ou uma mulher, se se quisesse.

O facto de ela não falar português foi um desafio acrescido?

Não, porque ela começou a ouvir e o Nuno Lopes foi maravilhoso nisso…

Sim, eles têm uma grande química no ecrã.

Sim, sim. E ela tem um ouvido muito musical e captou bem o som das [poucas] palavras em português que teve de dizer no filme.

Este ‘Menina’ já estreou em França, como é que tem sido a recetividade do público francês ao filme?

Em termos de público não teve muito, porque em França há tantos, tantos filmes que fazer uma boa bilheteira é muito difícil, mas nos media funcionou muito bem: no jornal Libération, na revista Les Inrockuptibles, no Le Figaro, em vários meios, o filme teve boas críticas. Mas as distribuidoras não querem arriscar num filme com dois atores portugueses, o Nuno Lopes e a Beatriz Batarda, e uma miúda.

Mesmo tendo o Nuno Lopes ganho um prémio no Festival de Veneza, em 2016, pelo filme ‘São Jorge’, por exemplo.

Sim, sim. Mesmo com isso e com a seleção agora para Cannes, do filme [‘Une Fille Facile’], de Rebecca Zlotovski, [que Nuno Lopes co-protagoniza]. Mas ele tem de ter atenção, porque em França há a tal gaveta. Precisam de um português, vão chamar o Nuno Lopes e não é isso que deve acontecer. O Nuno Lopes é um ator e pode fazer muito mais do que isso. E o mesmo vale para a Beatriz [Batarda], que fez uma peça do Pascal Rambert [no Teatro D. Maria II] e a Isabelle Huppert, que estava em rodagem em Portugal, foi vê-la e ficou sem palavras, achou a Beatriz Batarda uma atriz maravilhosa. E eu sei isso e fiquei com vontade de trabalhar outra vez com estes dois atores.

Tem algum novo projeto já em mente ou andamento?

Sim, tenho um novo projeto.

E pode adiantar-nos alguma coisa sobre ele?

Desta vez, centra-se na personagem de uma mulher francesa que não conhece nada de Portugal, não é lusodescendente, mas por causa de uma coisa que se passa na casa ao lado da dela e que se relaciona com um português, ela começa a investigar e a interessar-se pela história portuguesa e viaja para Portugal. Fala mais da história política de Portugal. Então metade do filme passa-se em França e outra metade aqui.

O interesse recente dos franceses por Portugal, muito porque Lisboa está na moda e pelas facilidades imobiliárias para os investidores estrangeiros, faz com que os franceses tenham passado também a conhecer um pouco mais da cultura portuguesa atual, e, por extensão, o seu cinema?

Sim, penso que sim. Não sei se será pelas melhores razões, mas o que conta é o resultado. Portugal, Lisboa, de facto, é a moda em França. Esta língua que falamos, que nos anos 60 e 70, era desprezada pelos franceses, hoje é elogiada. Bom, é preciso aproveitar a onda. De qualquer forma, o interesse de Lisboa para o mundo e para a França já não vai acabar, a tendência é continuar e crescer. E realizadores com o Marco Martins, que entrou em força, em França, com o ‘São Jorge’, são um bom princípio para dar a conhecer o novo cinema português. O Marco Martins, o João Canijo são pessoas com muito talento.

E em Portugal, como é que espera que o seu filme seja recebido?

Não quero esperar nada, para ser maravilhada com tudo [risos]. É como disse antes, para mim já é um presente o meu filme estrear aqui, em Portugal. As pessoas aqui são simpáticas, generosas, é como se fossem a família. Depois logo se verá.