“Eles acham que mandam, mas nós é que mandamos neles”. Passámos um dia num cabeleireiro de bairro

shutterstock_352625318

Todos os dias da semana, o Cabeleireiro da Lila, na linha de Sintra, recebe mulheres e homens (elas em maioria), para arranjarem o cabelo e pôr em dia a manicura e pedicure. Na entrada há um estendal com toalhas que serviram ainda há pouco para enxugar os cabelos lavados. Mal se entra, ouvem-se os secadores trabalhar, mas quando param, fala-se de tudo menos de cabelo e unhas.

“Bom dia, Lila. Tens um tempinho para mim?”. Regra geral, não são precisas marcações muito antecipadas. As pessoas vão passando e, se houver um tempo, Lila trata logo do assunto. Caso haja muito trabalho, o estribilho repete-se: “passe cá mais daqui a um bocadinho que eu atendo”.

O espaço é pequeno. Equivale a uns 10 passos em frente e uns quatro para o lado. Há três cadeiras ocupadas à esquerda e outros três bancos de espera, também ocupados, do lado direito. Ao fundo, lá está a Beta, a lavar o cabelo de Graciete, que a seguir vai fazer madeixas, enquanto Lila está mesmo a terminar o corte de Eunice. Joana está pronta para ser atendida.

Não há espaço para silêncio. Seja o barulho dos secadores, os risos infinitos de Beta, ou os desabafos sobre os maridos, os temas de conversa sucedem-se. “Se for preciso ele passa por cima da roupa trinta vezes, e não é capaz de a apanhar e pôr no cesto da roupa suja”. Lila interrompe o corte de cabelo a uma senhora e exemplifica, enquanto o resto faz cara de caso, em sinal de concordância. “Comigo é igual, não penses. E os sapatos que ficam à entrada da porta?”, reclama Eunice, já a pegar na mala para se ir embora.

À espera de vez, sem que alguém dê pela sua presença, está Armando, nas suas calças de ganga e t’shirt cinzenta. O único homem presente no espaço, com barriga das grandes, faz cara de poucos amigos perante a chuva de reparos. “O meu marido não sabe estrelar um ovo”, “o meu marido não sabe fazer nada”. Salve-se um comentário em sentido contrário: “o meu marido é que me estende a roupa”. Armando ri-se quando Lila o chama para cortar o cabelo. “Não tenho medo”, atira.

Casada há 46 anos, dona Graciete recorda outros tempos e outros preconceitos. “Antigamente era uma vergonha os homens estenderem roupa ou ajudarem nas tarefas de casa”. Nos dias de hoje o companheiro é quem mais a ajuda. Lava a louça, contribui nas limpezas e se for preciso até cozinha – “só não passa a ferro”. Com uns anos de vantagem no casamento, unida há meio século com o mesmo homem, Eunice não perde tempo a elogiar o marido. Sempre foi uma “joia de pessoa”.

Desastres, virtudes e outros dedos de conversa

As conversas vão muito mais além dos esquecimentos, propositados ou não, dos homens com quem vivem. Falam de tudo. Atualidade, questões pessoais – provavelmente o que tem mais saída –, e problemas de saúde. Há idades para todos os gostos, mas a faixa dos 55-75 anos está em franca maioria. Acrescente-se que têm todas muita pinta e quando saem do cabeleireiro da Lila, sem cabelinhos em pé, não há quem lhes acerte na idade.

No meio dos cabelos enrolados em prata, prontos para a mudança de cor, Beta introduz mais um tema na ordem do dia. Acha que o preço do arrendamento das casas, em Lisboa, está cada vez mais elevado, “em relação ao ordenado dos portugueses é realmente um abuso”.

Lila, por sua vez, tem reparado que o vício dos telemóveis já deixou de ser um problema só dos mais novos, alargando-se para os mais velhos. “Às vezes o meu marido está agarrado ao telemóvel e eu pergunto-lhe o que ele está a fazer. Ele responde-me que não está a fazer nada”, desabafa no meio dos cortes. Falaram em telemóveis? Apesar dos 68 anos que Graciete carrega nas costas, é toda dada às tecnologias, e acaba de pintar o cabelo de vermelho.

O filho de Lila aparece por volta da hora de almoço. Veio dizer um “oi” e aproveita para arranjar as sobrancelhas. Tem 27 anos e está quase a ser pai. Lá em casa “a minha namorada é que me esconde as coisas. É um jogo em que eu perco sempre. Nunca encontro nada”. A namorada retribui com um olhar de “estás a mentir”. Volta a conversa dos homens, mas desta vez em defesa deles próprios.

Uma coisa é certa, isto é muito mais do que um cabeleireiro. Que o diga Graciete. “Uns pagam psicólogos. Depois há outros como eu, que quando me apetece falar e ver pessoas, venho aqui”.

Aprenda a lavar o cabelo como no cabeleireiro