Leia em primeira-mão um excerto do novo livro de Felipa Garnel

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Fotografia: Álvaro Isidoro/ Global Imagens

Em busca de novas experiências, Felipa Garnel decidiu ser motorista da Uber por uns tempos. As histórias que ouviu deram origem ao seu primeiro livro, intitulado ‘Confidências’ (editado pela Lua de Papel) e com lançamento marcado para esta segunda-feira, 11 de março, no Vinyl, em Lisboa.

Os seus dias ao volante começavam às seis da manhã, o que lhe permitiu ver um pouco de tudo e ouvir histórias tão diferentes quanto os clientes que transportou. Felipa Garnel ouvia-as e registava-as, e à noite, ao jantar, contava ao marido e às filhas as peripécias do seu dia, enquanto motorista da Uber.

 

Capa do livro [DR]

É uma dessas histórias que partilhamos no Delas.pt, em pré-publicação exclusiva, numa parceria com a editora Lua de Papel.

Leia, em baixo, ‘Maldita Cocaína’, o quinto capítulo de ‘Confidências’.

 

CAPÍTULO 5

Maldita Cocaína

Na semana em que comecei a trabalhar para a Uber decorria no Centro de Congressos do Estoril a 70ª edição do World News Media Congress, que tinha como oradores os principais
editores e responsáveis de meios de imprensa consagrados, com The New York Times, The Wall Street Journal, Le Parisien, The Washington Post, Süddeutsche Zeitung, entre outros.

As conferências e debates centravam-se num tema que me interessa: a mudança de paradigma na imprensa. Repensar um sector que tem sofrido grande transformação, lançando novos desafios.

Tinha lido pouco tempo antes umas declarações do presidente executivo da WAN-IFRA – a Associação Mundial de Imprensa e de Editores de Imprensa – nas quais me revia totalmente:
“Vivemos uma época em que a confiança nos media é preciosa. As receitas da publicidade baseadas na relação com o leitor estão a reformular os fundamentos da indústria da
Imprensa, cada vez mais focada nas audiências, em novas formas de colaboração e alianças, sendo fundamental a aposta no jornalismo de qualidade.”

Como as coincidências fazem parte da vida, a maioria dos meus clientes nesses dias foi jornalistas estrangeiros ou pessoas ligadas aos media (de áreas como a publicidade ou o marketing) presentes no evento.

Uns mais simpáticos do que outros.

Um deles, um norte-americano expansivo, fez uma festa quando cheguei à porta do Centro de Congressos e, ainda fora do carro, vangloriou-se na sua língua natal:

“You know you’re a lucky man when you call an Uber and you get a beautiful lady in a Mercedes. Welcome to Europe!” ( “Sabes que és um homem de sorte quando chamas um Uber e o que recebes é uma mulher linda num Mercedes. Bem-vindo à Europa!”)
Ri-me e agradeci o piropo enquanto ele entrava no carro e se sentava ao meu lado. Deveria ter quarenta e tal anos. O típico yuppie: alto, magro, nariz pontiagudo, olhos pequenos, escuros, traços judaicos.

Não descansei até perguntar:

– Que tal a conferência?

– Menos boa do que poderia e deveria ser – respondeu, arregaçando as mangas da camisa azul-clara que combinava na perfeição com umas calças cinzentas de corte irrepreensível. Sapatos cor de mel escuro, de atacadores, lindos, pareciam feitos por encomenda. (Há três coisas em que reparo logo num homem: os olhos, as mãos e os sapatos. Por esta ordem.) – Nos Estados Unidos vivemos uma realidade diferente da Europa. Já fizemos a travessia do deserto na imprensa escrita e, finalmente, as receitas publicitárias conseguem viabilizar bons projetos digitais. Aqui essa conjuntura ainda está distante, portanto o que nos interessa, a nós profissionais de comunicação americanos, não é necessariamente o mesmo que preocupa os Europeus…
Conhecia bem a conjuntura a que ele se referia, aquela que já tinha levado à extinção de tantos jornais e revistas em Portugal, na Europa, pelo mundo fora. E, na minha opinião, levaria ao fim das edições em papel de muitos mais nos próximos anos…
– Em Portugal temos um problema mais grave – continuei, interessada na conversa. – O mercado é tão pequeno que a fatia de publicidade, muitas vezes decidida numa perspetiva
ibérica, reservada aos meios digitais é ínfima. Dá para sustentar blogues com estruturas pequenas. Mais do que isso é complicado…

– Já vi que é um assunto de que gosta – retorquiu, surpreso.

De facto, não deveriam existir muitos motoristas familiarizados com a crise da imprensa escrita…

– Sim – respondi, sem me alongar. – Onde trabalha?

– Agora numa agência de notícias. Era diretor comercial de um grande jornal em Chicago quando a crise dos media assolou os Estados Unidos e acabei, como muitos, no desemprego. Perdi o trabalho e a cabeça…

– Porquê a cabeça? – perguntei, consciente de que estava a pisar terreno íntimo de alguém que acabara de conhecer. Arriscava-me seriamente a ouvir “o que tem a ver com isso?”,
mas não. James queria falar, não sei bem porquê. Talvez por ter tido o cuidado de lhe perguntar, no início da viagem, se preferia ir do Estoril até ao hotel na Quinta da Marinha pela Marginal e, assim, conhecer um pouco de Cascais. Ou porque, de alguma maneira, se sentia em casa, percebia de onde eu vinha…

– Cocaína. Muita cocaína, muitas festas, muitas mulheres, muitas viagens a Ibiza, muito tudo. E pouco juízo.

– Pois, um mundo perigoso… Cheio de glamour no princípio, um inferno no fim.

– Gastei em dois anos o que daria para uma reforma confortável, para um fim de vida digno; fiz loucuras atrás de loucuras e acabei internado num centro de recuperação em Ohio.

– E agora está bem?

– Sim, hoje estou bem – respondeu a sorrir.

Reconheci o “hoje” do lema “um dia de cada vez” dos Narcóticos Anónimos. Faço parte de uma geração castigada pela droga. Tive vários amigos que morreram de overdose, outros que se suicidaram, e tenho muitos, próximos, que são NA.

Tal como o James.

– “Limpo só por hoje” – provoquei-o, sorrindo também.

– Além de saber sobre imprensa, também conhece o programa dos doze passos?

– Conheço, mas não sou nem nunca fui toxicodependente.

– Os Narcóticos Anónimos salvaram-me, arrancaram-me das trevas. Vivia, depois desse tal período glamouroso, num mundo obscuro em que nada me interessava, para além da cocaína. Quando o dinheiro acabou, para sustentar o vício e apaziguar a mente (eu consumia no mínimo um grama e meio por dia… injetava-me) – arregaçou ainda mais uma das mangas da camisa para me mostrar as cicatrizes provocadas pelas agulhas desaustinadas na procura de veias sãs –, roubei, prostituí-me, quase matei, quase morri, desci ao limite da condição humana. A cocaína era o meu melhor amigo, o meu confidente, a minha família, a minha amante. Por ela faria o que fosse preciso, doesse a quem doesse. Mesmo àqueles que
mais amo…

Engoli em seco, atordoada. Porque estaria ele a contar-me a vida toda?, pensei, lembrando-me imediatamente de que eu tinha feito por isso. E ele continuava, num desabafo sem tréguas:

– Um dia um amigo de infância encontrou-me, imundo, à deriva, depois de uma noite passada nas ruas de Chicago. Pegou em mim, levou-me para o seu apartamento, ele tinha uma vida boa, uma casa, mulher, filhos, tudo o que eu perdera, telefonou ao meu pai, com quem eu não falava há mais de um ano, e os dois, juntos, convenceram-me a tentar deixar a droga. Pelo menos a tentar…

– Tem filhos? – interrompi.

– Tenho dois. Uma rapariga e um rapaz, de treze e dez anos. Recuperei-os há pouco, se é que é possível recuperá-los totalmente… Vão ter comigo a Londres daqui a três dias para
irmos dar uma volta pela Europa. Quero muito devolver-lhes o tempo roubado, voltar a ser pai. Quero, sobretudo, que voltem a amar-me, a respeitar-me. Mas ainda tenho um longo caminho a percorrer. Indiretamente fiz-lhes muito mal. E à mãe deles também, mas isso são contas de outro rosário… – rematou, melancólico, para relembrar a seguir: – Nessa manhã, encostado à janela de casa do meu amigo, mergulhei os olhos no lago Michigan, enchi-me de coragem (é preciso muita coragem para largar a cocaína!), aceitei a proposta do meu pai e embarquei na aventura da recuperação em Ohio. Passo a passo, durante meses de dor, de luta, de vergonha, de sentimentos contraditórios, de tentações caladas, sobrevivi. Finda a fase aguda da ressaca, aos poucos comecei a reerguer-me, pedi desculpa às várias pessoas que tinha magoado – e ainda me faltam algumas…–, resgatei a dignidade que pude e aqui estou de novo, a batalhar.

Estava um fim de tarde lindo e a baía de Cascais, com aquela luz, ficava ainda mais bonita. Valia a pena enfrentar o trânsito todo até ao centro da vila para ganhar aquele prémio.
As traineiras, de diferentes cores e tamanhos, abrigadas entre a Cidadela e o hotel Baía, pareciam desenhadas no mar. Os turistas, deslumbrados, fotografavam incessantemente o
rodopio dos pescadores no regresso da faina, indiferentes aos carros que passavam, como se todo o mistério do mundo estivesse concentrado ali, naquela baía, naquele instante.
James estava encantado.

– Se não tivesse um jantar combinado com uns colegas da delegação europeia da agência pedia-lhe para me deixar aqui. Apetecia-me dar uma volta a pé, beber um copo numa destas
esplanadas… Um copo de água com gás! – retificou a rir.

– Claro! Também não bebe, certo?

– Absolutamente nada que tenha álcool. Nem um bombom recheado. – Voltou a rir-se com vontade. – E também deixei de comer carne, peixe, tudo o que tenha origem animal.

– A sério? – perguntei, curiosa – É vegan?

– Sou. Quando saí do centro de recuperação quis mudar radicalmente de vida e a alimentação fez parte dessa transformação. Sinto-me muito melhor, com mais energia, mais vigor. Mas nos Estados Unidos é fácil sermos vegetarianos ou vegan. Aqui, segundo me parece, vocês comem muita carne e peixe, não é?

– Sim – respondi, com alguma culpa, sem saber porquê. – Começam agora a surgir mais restaurantes com diferentes opções, mas ainda estamos muito longe da oferta existente nas cidades norte-americanas.

– Ontem houve um jantar promovido pelos organizadores do congresso, no Casino. O menu já estava estipulado: um prato de peixe, “bacalao Gomêz Sahhh” – tentou, com dificuldade, pronunciar em português, bacalhau à Gomes de Sá – ou “aroz di patú”. – Faltava um “r” ao arroz que servia de cama ao pato agudo. – Chamei o empregado, disse que não comia carne nem peixe, na esperança de que me desse uma alternativa. Respondeu-me:“Lamento, vai ter de ficar só com a sopa… Mas é sopa de legumes!” Apesar da fome, aceitei. Pedi-lhe então, por favor, que me trouxesse duas sopas. Era “calto vertche”, sabe o que é?

– Sim – respondi, dando uma gargalhada. – Cal-do Ver-de – soletrei.

– Isso. Quando chegou a primeira sopa, vinha cheia de chouriço. Levantei o braço para chamar o empregado e reclamei: “Isto tem chouriço e, como lhe disse, não como carne.” “Ah, perdão…”, respondeu, prontamente, tirando-me a colher da mão para com ela pescar os três bocados de chouriço que boiavam à minha frente e atirá-los para um prato pequeno. Depois, contente com o feito, disse: “Pronto. Já tem uma sopa vegetariana!” Caíam-me as lágrimas de rir, imaginando o americano vegan, yuppie, enojado com as rodelas feitas das entranhas do porco e com o descaramento do empregado de mesa. Como bom português,
arranjara solução num ápice.

– E, depois, comeu a sopa?

– Tentei até descobrir um novo pedaço afundado por baixo da relva. – Sim, ele disse grass! – Aí desisti. A sopa tresandava a chouriço… Bebi uma coca-cola atrás da outra para
enganar a fome, na esperança de chegar ao hotel e comer umas torradas barradas com abacate. Mas, à meia-noite, quem atendeu do serviço de quarto disse-me que àquela hora só com manteiga…

Dei nova gargalhada já quase à porta do dito hotel. Não devia mesmo ser fácil para um estrangeiro que não conhece os cantos à casa ser vegan em Portugal.

Chegados ao destino, peguei no smartphone para “Terminar a Viagem”. James estendeu-me a mão, apertou a minha com força e agradeceu-me. Não me agradecia a condução, mas a
conversa, o ouvido, a empatia.

– Vou escrever-lhe um elogio – prometeu, desajeitado, antes de bater a porta atrás de si.

– Obrigada. Vou gostar de ler. Boa viagem com os seus filhos. Aproveitem muito!

Uns minutos depois, soou um alerta de nova nota na secção “Elogios de Utilizador” da aplicação da Uber. Parei para ler. Rezava assim: “The best Uber ride I have ever had and I use
Uber a lot all over the world. Such a sweet, lovely lady. Definitely above and beyond!” (“A melhor viagem de Uber que já fiz na vida e eu uso bastantes vezes o Uber em todo
o mundo. Que senhora tão simpática e adorável. Superou todas as expetativas!”)

Cheguei a casa cansada, mas bem-disposta. Contei ao Nuno, à Rosa e à Ana a história do James. As miúdas ficaram impressionadas quando lhes falei nas cicatrizes nos braços provocadas pela droga. Ainda bem. Assim percebem, desde cedo, que há marcas de vida que vida nenhuma apaga.

*****