‘Milkman’, Booker Prize 2018, é lançado hoje. Leia um excerto do livro de Anna Burns

capa milkman

‘Milkman’, o romance vencedor do prémio Booker 2018, chega finamente às livrarias nacionais. O livro de Anna Burns é lançado esta quinta-feira, 19 de setembro, pela Porto Editora.

A obra, que ganhou prestígio com o Man Booker Prize, tem somado distinções: venceu também os prémios National Book Critics Circle e Orwell para ficção política.

 

Capa de Milkman, edição Porto Editora (preço, €18,80)

 

Tendo como cenário os conflitos da Irlanda do Norte, nos finais dos anos 70, ‘Milkman’ acompanha uma jovem rapariga, anónima e igual a tantas outras, que, de repente, se vê envolvida num boato sem fundamento e é arrastada para um quotidiano pautado por uma violência que não sendo física é igualmente destruidora, refere a descrição da editora.

Os limites do assédio, numa época em que ainda não há uma palavra para o definir e punir, e o poder destruidor que um boato pode ter são abordados através de uma comovente história de resiliência e de verdade num mundo marcado por crenças e fronteiras.

O Delas.pt publica, em exclusivo e em parceria com a Porto Editora, um excerto de ‘Milkman’, que pode ler aqui:

Um

“O dia em que o Coiso e Tal me encostou uma pistola ao peito e me chamou assanhada e ameaçou dar-me um tiro foi o mesm dia em que o leiteiro morreu. Fora morto a tiro por uma força de intervenção e, pela minha parte, não me ralou que aquele homem morresse. Mas houve quem se importasse e alguns desses eram do género «conheciam-me, mas não me falavam» e eu agora andava nas bocas de todos porque corria um rumor a meu respeito, maso mais provável é que tenha sido o cunhado um, e o rumor era de
que eu tivera um caso com esse tal leiteiro, de que eu tinha dezoito anos e ele, quarenta e um. Eu sabia a idade dele, não por ele ter sido morto a tiro e a idade mencionada nos jornais, mas porque as pessoas já andavam a falar antes, o diz-que-diz tinha começado meses antes de o matarem a tiro, pelos mesmos que espalharam o rumor, diziam que quarenta e um e dezoito era nojento, que vinte e três anos de diferença era nojento, e que ele era casado e que eu não enganava ninguém, porque por ali não faltava gente discreta que sabia estar atenta sem dar nas vistas. Ao que parecia, o meu caso amoroso com o leiteiro também era culpa minha. Mas não houvera caso amoroso com o leiteiro. Eu não gostava dele e assustava-me e confundia-me que ele andasse atrás de mim a tentar ter um caso amoroso comigo. Também não gostava do cunhado um. Entre as suas compulsões estava inventar a respeito da vida sexual dos outros. Da minha vida sexual. Ele apareceu era eu mais nova, tinha doze anos, foi quem a minha irmã mais velha arranjou depois de acabar com o namorado de longa data porque ele a traíra, e então este homem que ela arranjou engravidou-a e casaram a correr. Ele começou com as insinuações nojentas assim que me conheceu – que eu era esquisita, e arisca, e toda patriota, e o coiso, e a coisa, e que era arredia e mais aquilo que era uma palavra feia – e usava palavras, palavras sexuais, que eu não percebia. E ele sabia que eu não as compreendia, mas que já percebia o suficiente para saber que tinham que ver com sexo. E era isso que lhe dava gozo. Ele tinha trinta e cinco. Doze e trinta e cinco. Outros vinte e três anos de diferença.

E então ele fazia os seus comentários e achava-se no direito de fazer aqueles comentários e eu não dizia nada porque não sabia como reagir. Ele nunca fazia comentários destes quando a minha irmã estava presente. Mas, mal a minha irmã saía da sala, parecia que se ligava um interruptor dentro dele. O lado positivo era que eu não o temia fisicamente. Naquele tempo, naquele lugar, a violência era a principal bitola por que toda a gente julgava todos à volta, e eu percebi logo que ele não era violento, que não era isso o que lhe interessava. Ao mesmo tempo, aquela sua atitude predadora deixava-me sempre paralisada. Portanto, ele não valia nada e ela grávida, o que não era bom, porque ela ainda amava esse tal com quem tinha estado muito tempo e ainda não conseguia acreditar no que ele lhe fizera, e não acreditava que ele não sentisse a falta dela, mas ele não sentia. Porque agora estava com outra. E era como se a minha irmã não visse esse outro homem, o tal mais velho com quem casara, era nova de mais e infeliz de mais e ainda estava demasiado apaixonada – por outro –, por isso não gostava deste. Deixei de a ir visitar, embora ela andasse triste porque já não aguentava as coisas que ele dizia e as caras que fazia. Passados seis anos, com ele ainda a ver se levava alguma coisa de mim ou das minhas outras duas irmãs também mais velhas, e nós as três a rejeitá-lo – ora com indiretas, ora com diretas, ora educadas, ora a dizer-lhe que se fosse foder –, entrou em cena o leiteiro, vindo do nada e também sem ninguém o querer por ali, porém muito mais assustador e perigoso.

Não sabia a quem levaria ele o leite. A nós, não era. Eu até acho que ele nunca foi leiteiro. Não o via tomar nota de pedidos. Nunca o vi tocar em leite. Nunca o vi entregar leite. E também não guiava uma carrinha do leite. Guiava carros, sempre carros diferentes,
amiúde carros que davam nas vistas, embora ele próprio não desse nas vistas. Mas, apesar de tudo isto, eu só reparei nele e nos carros quando ele começou a plantar-se à minha frente. E também havia a carrinha – pequena, branca, que por fora não dizia nada e que se
confundia com todas as outras. De tempos a tempos, viam-no ao volante daquela carrinha.

Um dia apareceu num daqueles seus carros, vinha eu pela rua a ler Ivanhoe. Muitas vezes, eu vinha a ler pela rua. Não via qual era o mal nisso, mas acabou por se converter em mais uma prova contra mim. «Vir a ler pela rua» fazia parte da lista, sem dúvida.

– Tu és uma das irmãs tal e tal, não és? O teu pai era tal e tal, não era? Os teus irmãos, tal e tal, tal e tal, tal e tal e tal e tal, fizeram parte da equipa de hóquei, não fizeram? Entra. Eu dou-te boleia.

Disse isto muito casualmente, a porta do passageiro já a abrir. Eu ia a ler e sobressaltei-me. Não tinha ouvido o carro chegar. Também nunca tinha visto o homem que o guiava. Ele estava debruçado da janela, a olhar para mim, com um sorriso amistoso e prestável. Mas, agora que já tinha dezoito anos, os «sorridentes, amistosos e prestáveis» deixavam-me logo alerta. O problema não era a boleia. Por ali, era normal quem tinha carro parar e oferecer boleia aos que estavam a ir ou a vir da nossa zona. Na altura, os carros não abundavam, e os transportes públicos, por causa das ameaças de bomba e dos sequestros, de vez em quando paravam de circular. Também se sabia que alguns condutores andavam à procura de prostitutas, mas era algo que se sabia apenas em teoria, não na prática. Eu cá nunca vira tal coisa. Fosse como fosse, eu não queria boleias. De um modo geral. Gostava de andar: lia a andar e pensava a andar. E, falando mais concretamente, não queria meter-me num carro com aquele homem. Mas não sabia como dizê-lo, porque ele não estava a ser incorreto e conhecia a minha família, referira pelo nome cada um dos homens da minha família, e eu não podia ser indelicada porque ele não estava a ser indelicado. Então, hesitei, ou paralisei, o que já era ser indelicada.

– Estou a andar – respondi. – Estou a ler. – E mostrei-lhe o livro, como se Ivanhoe fosse explicação bastante para eu ir a andar pelarua, para ter de ir a andar pela rua.

– Podes ler no carro – propôs ele, e não me lembro do que respondi. Até que ele deu uma gargalhada e disse: – Não há problema. Não te preocupes. Lê lá o teu livro. – E fechou a porta do carro e arrancou.

Da primeira vez, foi só isto que aconteceu, mas foi o suficiente para começar um rumor. A minha irmã mais velha veio falar comigo porque o marido, o meu cunhado agora com quarenta e um anos, lhe dissera que viesse falar comigo. Que ela tinha de me pôr
ao corrente do que se passava e de me avisar. Ela disse-me que eu fora vista a falar como aquele homem.

– Vai à merda – disse eu. – Isso quer dizer o quê, viram-me? Viu-me quem? O teu marido?

– Ouve-me, que é melhor para ti – disse ela. Mas eu não queria ouvi-la e era por causa dele, que pregava uma coisa e fazia outra, e ela ainda lhe dava ouvidos. Eu ainda não sabia que a culpava, que havia muito que a culpava pelas insinuações dele, que duravam há anos. Ainda não sabia que a culpava por ter casado com ele sem o amar, e
era impossível que ela o respeitasse, porque de certeza que sabia, era impossível não saber que ele se metia com outras.

Ela ainda insistiu dizendo-me que tivesse cuidado com o que andava a fazer e avisando-me de que só me prejudicava a mim e que, de todos os homens com quem me podia ter ido meter… Mas eu já estava farta. Irritei-me e disse mais uns palavrões, porque ela não gostava de palavrões, e essa era, portanto, a única maneira de fazer com que ela se fosse embora. E ainda lhe gritei pela janela que, se aquele cobarde tinha alguma coisa para me dizer, então que fosse ali dizer-ma na cara. Isto foi um erro; deixei-me enervar, deixei que
me vissem e me ouvissem naquele estado, enervada e a gritar para a rua. Deixara-me levar pela situação. Normalmente, conseguia evitar isso. Mas estava furiosa. Sentia uma raiva enorme – contra ela, por ser a esposa boazinha e fazer sempre tudo o que ele dizia, e contra ele, porque era desprezível e agora estava a conspurcar-me com a sua ruindade. Já sentia a minha obstinação, aquele meu «mete-te na tua vida» a vir à tona. Infelizmente, sempre que isso acontecia, eu piorava ainda mais a coisa; recusava-me a aprender com a experiência, era como se atirasse pedras ao meu próprio telhado. Quanto ao rumor sobre mim e o leiteiro, não liguei, nem pensei mais. Por ali, nunca tinham faltado más-línguas. Os rumores começavam e paravam, vinham e iam, e logo surgia outro alvo. Por isso, não dei atenção ao meu caso amoroso com o leiteiro. Até que ele tornou a aparecer, desta vez a pé, quando eu estava a correr no parque onde havia as duas represas.

Estava sozinha e, desta vez, não ia a ler, pois eu nunca lia quando corria. E então surgiu ele, uma vez mais vindo do nada, e desta vez começou a correr ao meu lado, e ele nunca estivera ao meu lado. Assim, de um momento para o outro, estávamos a correr os dois
lado a lado e eu tornei a sobressaltar-me, tal como me sobressaltaria a cada encontro que viria a ter com aquele homem, excetuando o último. Ao princípio, ele não falou e eu não conseguia falar. Até que se dirigiu a mim e foi como se estivéssemos a meio de uma conversa. As suas palavras foram escassas e saíram-lhe a custo, porque eu ia a
correr depressa, e falou sobre o meu local de trabalho. Ele conhecia o meu trabalho – onde era, o que eu fazia, qual o meu horário, os dias em que eu lá ia e que todas as manhãs eu apanhava o autocarro das 8h20, a menos que este tivesse sido sequestrado, para ir para a Baixa. Depois, fez uma afirmação – que eu nunca regressava a casa naquele autocarro. O que era verdade. Durante a semana, chovesse ou fizesse sol, houvesse tiroteios ou bombas ou protestos ou confrontos, eu preferia voltar a pé e vinha sempre a ler. E era sempre um livro do século XIX porque eu não gostava de literatura do século XX, porque não
gostava do século XX. Hoje, em retrospetiva, ocorre-me que talvez o leiteiro também já soubesse tudo isto.”