Mulheres aos comandos das novelas do horário nobre

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Imagem de 'Amor, Amor', Com Ricardo Pereira e Maria João Bastos, novela da SIC e atualmente líder no horário

As novelas de horário nobre estão, pela primeira vez e em quase quatro décadas de história, todas nas mãos de mulheres. Vejamos: O cantor pimba Romeu é casado com Vanessa, mas ainda está apaixonado por Linda. A professora Beatriz e o ex-militar Diogo querem ser felizes, mas Eduarda não deixa. O advogado David e a pastora Maria Rita debulham diferenças sociais em busca do amor e Zeca, o homem que todas querem, só tem olhos para Ema, mas o passado traumático teima em corromper o felizes para sempre.

Estas são as quatro principais histórias televisivas que sentam no sofá, em média, mais de dois milhões de espectadores por noite depois dos telejornais acabarem e até à hora de deitar. Amor, Amor e Terra Brava, na SIC, e Bem Me Quer e Amar Demais, ambas na TVI, têm como líderes de projetos, respetivamente, Ana Casaca, Inês Gomes, Maria João Mira e Maria João Costa.

E se as mulheres estão agora na linha da frente da ficção nacional de continuidade, em que é que esta é diferente? “Penso que as mulheres mais impulsivas, orgânicas e sentimentais e os homens mais pragmáticos e isso pode refletir-se na linguagem da história”, refere Ana Casaca, estreante como autora principal da novela mais vista, Amor, Amor, e argumentista há quase 20 anos.

Ana Casaca autora Amor, Amor
Ana Casaca [Fotografia: DR]
Para Maria João Mira, uma das pioneiras de escrita de novela em Portugal e que chegou a coordenar a Casa da Criação, uma incubadora para os autores nacionais concebida no início deste milénio, “há uma ficção no feminino”. “Há sensibilidades diferentes, agora não consigo valorizar porque a novela é de um autor, mas, em boa verdade, é o produto de uma equipa mista”, revela a autora de Bem Me Quer, exibida na TVI.

No limite, esta argumentista crê que a diferença de sensibilidades entre os géneros se deve mais “aos temas que se privilegiam”. E exemplifica: “Diria, em abstrato, que é mais fácil uma mulher falar de violação ou de violência doméstica do que um homem porque é um tema que lhes diz mais a elas.”

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Maria João Mira [Fotografia: Rodrigo Cabrita/Global Image31
Inês Gomes, que já terminou Terra Brava e que se prepara para estrear Serra (nome de projeto), na SIC, aponta antes para a forma como se escrevem as interações das personagens. “Essa diferença nota-se nas reações. Diria que as mulheres são menos estereotipadas na forma de reagir”, explica, ressalvando: “mas também podemos cair um bocado na transformação dos homens e um argumentistas tem de se por na pele de todos, homem, mulher, criança, assassino, o que for”.

Inês Gomes mulheres autora Terra Brava Serra SIC
Inês Gomes [Fotografia: Terra Brava]
“Não sei se pode falar em ‘ficção no feminino’, no sentido em que me parece um mero acaso termos apenas mulheres a assinar em simultâneo as novelas que estão no ar”, refere Maria João Costa. Em Amar Demais – tal como em Bem Me Quer– a argumentista é a única mulher na sua equipa de guionistas. Acrescenta, porém, que “essa coincidência de ‘autoras no ar’ parece querer mostrar é que este é um setor onde, felizmente, não há falta de representatividade do género feminino, o que é um ótimo sinal”.

Crê ainda que o “facto de haver apenas tramas de autoras em exibição tenha um reflexo direto no tipo de histórias que são contadas, até porque esta é uma profissão onde o cunho autoral é muito marcado, e cada autor, independentemente do género, tem um estilo muito próprio que se reflete na escrita, no ritmo de cada história, no tipo de dramas e personagens abordados”.

Para Maria João Mira, esta chegada massiva de mulheres como líderes de projeto à ficção nacional de horário nobre retrata e reflete a ascensão às várias áreas profissionais da sociedade. “Como em tudo o mais, tem havido mais mulheres em profissões e a autoria de novelas acompanhou isso”, conta. Quando coordenava a Casa da Criação, lembra que “sempre houve mais autoras do que autores, porém, eram eles que mais estavam à frente de projetos”. Agora, elas tomaram o topo, quase 40 anos depois da estreia da primeira novela made in Portugal, Vila Faia, escrita por Francisco Nicholson e exibida na RTP.

Pandemia? Teletrabalho? Não, obrigada!

As tramas refletem, muitas vezes, o contexto e a realidade em que a sociedade está mergulhada. Porém, trazer a pandemia para a ficção ou o teletrabalho não está em cima da mesa para nenhuma das argumentistas. “Pessoalmente, escolhi não a tratar em Amar Demaispor achar que a nossa vida já tem excesso de informação em relação ao tema e por sentir que isso iria ‘poluir’ o ambiente de uma novela que pretende ser mais leve”, revela Maria João Costa. “Não ignoro o tema, mas não o exploro”, acrescenta, justificando que, “para a maioria das pessoas, a ficção é um escape à realidade, é o seu momento de relaxar, de se divertir, de pensar em outras coisas que não aquilo que as preocupa”.

“Uma das funções da novela é distrair as pessoas”, concorda Inês Gomes.”É verdade que os temas de atualidade e o que se vive em sociedade se encaixam sempre bem nestas histórias, mas a pandemia parece-me, para já, uma exceção. Tem demasiada força”. “O público quer, cada vez mais, abstrair-se e ver ficção no sofá, por uns minutos para sair da realidade que está la na fora”, acrescenta Ana Casaca.

Maria João Mira, “sem opinião formada sobre esta matéria”, admite as duas visões. Lembra, contudo, que, atualmente, as novelas portuguesas, em muito por “opção estratégica das emissoras”, estão “mais clássicas, com abordagens mais conservadoras no tipo de história, mais positivas, com mais amor romântico, a representar com maior frequência a busca pelo sonho, a transportar as pessoas para tempos melhores”.

E se a pandemia não cabe na história, o teletrabalho não tem destino diferente. “Acho que seria ainda mais complexo de mostrar”, afirma a autora de Bem Me Quer, considerando que seria o “retrato de uma realidade que estaria desatualizada quando fosse exibida”.

“Teletrabalho? É melhor não”, responde Ana Casaca. Já a autora de Amor, Amor crê que trazer o assunto à narrativa é recordar o que as pessoas não querem ver quando estão a tentar escapar ao contexto de vida. “Em Amar Demais, por exemplo, tem sido abordado o problema da violência doméstica, que está longe de ser novo ou original, mas que infelizmente continua mais atual que nunca, dada o aumento dramático do número de casos deste crime por causa do confinamento”, vinca Maria João Costa.

“As mulheres estão longe de ser santas. Fortes sim, santas não”

Para as quatro autoras, não há temas que tenham lugar cativo em novelas apenas porque as histórias partam de mulheres ou homens.

No entanto, é sabido que, “geralmente, uma novela corre melhor quando a protagonista é mulher, sobretudo porque o público é maioritariamente feminino – embora existam cada vez mais homens a ver – e procura uma identificação”, analisa a autora de Terra Brava. Inês Gomes diz mesmo que “se se está a fazer uma história com um protagonista masculino, é sempre preciso transformar a mulher e dar-lhe força”. “É uma questão de hábito de consumo de ficção, diria.”

“As mulheres têm sido, sem dúvida, e por causa de séculos de uma cultura patriarcal, muito penalizadas em relação aos seus direitos. Tiveram de encontrar formas de sobreviver a tanta injustiça e opressão, o que as tornou mestres na arte da sobrevivência. Isso faz delas personagens fascinantes para explorar na ficção, até porque estão longe de ser santas. Fortes sim, santas não”, refere a argumentista de Amar Demais.

Maria JOão Costa Amar Demais novela mulheres autora TVI
Maria João Costa [Fotografia: DR]
“Gosto sempre de mulheres heroínas e acho que faltam heróis masculinos”, aponta Ana Casaca, que apostou num em Amor, Amor (Romeu interpretado por Ricardo Pereira). “Acho, sinceramente, que ainda não chegou o tempo, mas já estivemos mais longe”, refere. Espera mesmo que tal aconteça até porque esta autora diz apreciar olhar a realidade pelos olhos dos homens. “Gosto muito de retratar divórcios do lado do homem, a paternidade, por exemplo. É sempre tudo visto pelo lado da heroína, a mãe, a mulher, o público – maioritariamente feminino e quer sonhar e identificar-se – ainda não quer ver heróis masculinos”, analisa.