No Tayybeh a cultura Síria serve-se na cozinha caseira de Ramia

Ramia Ghunim, 36 anos, era engenheira informática na Síria. Hoje gere, com o marido Alan, o mais recente restaurante de cozinha típica daquele país, a abrir portas em Lisboa – e o mais novo passo que dá com a sua família para reconstruir a vida desde que fugiu da guerra.

Estão há três anos na capital portuguesa, que lhes faz lembrar Damasco, diz-nos Alan, e há pouco mais de um mês abriram, na zona de Moscavide, o Tayybeh, um dos poucos espaços dedicados à gastronomia daquele país, em Lisboa, e uma raridade ainda maior na zona oriental da cidade.

Com dois filhos, um rapaz adolescente e uma rapariga, Ramia e Alan deixaram a Síria em 2011, pouco tempo depois de o conflito começar. Passaram por outros países, como o Qatar, e têm família na Alemanha, mas o destino que tinham escolhido para recomeçar já estava traçado e era outro: Lisboa, Portugal.

A segurança que o país oferece a quem vem de fora, a possibilidade de obter um visto, por comparação com outros países, e as menções favoráveis que receberam dos amigos relativamente a Portugal pesaram na decisão, segundo nos conta Ramia.

“Decidimos juntos vir para cá, temos muitos amigos aqui e conhecemos muitos portugueses no Qatar e o clima é muito semelhante ao da Síria. Quando chegámos, e ainda antes de conhecermos Lisboa, decidimos ficar. Fomos para o hotel, em Alfama, e vimos que era este o lugar para nós. Porque é como a zona antiga de Damasco, o mesmo tipo de ruas”, acrescenta Alan.

Além disso, também alguns hábitos alimentares do portugueses trouxeram de imediato a esta família síria lembranças de casa. “Chegámos à noite a Alfama e, de manhã, quando saímos para comer, vimos que as pastelarias vendiam pão fresco e os sacos com pão pendurados nas portas das casas, como em Damasco. É como se estivéssemos na Síria da Europa”, conta Alan.

Essa semelhança de hábitos, diz o casal, também se manifesta nos clientes que chegam ao restaurante, dispostos a provarem sabores exóticos e, entretanto, surpreendidos com a familiaridade dos ingredientes, estabelecendo, muitas vezes, comparações com a gastronomia portuguesa, como explica Alan: “Temos um prato que os portugueses dizem que têm igual, mas com porco, que pode ser encontrado em Aljustrel, no Alentejo. Porque também temos pratos que usam coentros e azeite. Usamos muito o azeite e o Alentejo tem o mesmo tipo de azeite que a Síria tem”.

 

(Fotografia: Gerardo Santos / Global Imagens)

Grão-de-bico, beringela, tomate, pimentos, coentros, nozes, alho, limão, azeite e diferentes tipos de carne (frango, vaca e borrego) são alguns dos ingredientes usados nos pratos confecionados no Tayybeh, e que não serão estranhos aos hábitos nacionais. Será nos doces e nas sobremesas e na molokhia – uma planta usada na culinária de alguns países do Médio Oriente – que o palato português sentirá maiores, mas agradáveis, diferenças.

Da tecnologia à restauração

Ramia e Alan são ambos engenheiros informáticos, conheceram-se ainda no liceu e voltaram-se a encontrar anos mais tarde, depois de concluírem os respetivos cursos. Quando chegaram a Portugal, Ramia ainda colaborou com uma correspondente do Financial Times, intermediando contactos com alguns CEO de empresas do Médio Oriente. “Foi um trabalho que durou seis meses e depois o projeto acabou e eu parei de trabalhar”, começa por contar.

Nessa altura, recorda Ramia, receberam o convite para participarem no Festival Todos, em Lisboa, com outros refugiados sírios. O desafio foi cozinhar “comida síria para os portugueses”. “Não fazíamos ideia de qual iria ser a reação das pessoas, se iriam gostar ou não. Mas fizemos comida para cerca de 100 pessoas, na altura, e tivemos muitas pessoas a comer a nossa comida e a dizer que gostavam. A comida acabou toda. As pessoas gostaram”, recorda Ramia. Nunca tinham cozinhado para tanta gente e esse foi “outro desafio”, completa Alan.

Depois do festival, o casal aventurou-se no catering e começou a receber pedidos de várias universidades portuguesas e associações. “Percebemos que as pessoas gostavam da comida e faziam mais pedidos, por isso decidimos continuar nesta área e abrir um restaurante”, conta Ramia.

Um orçamento limitado e os preços do imobiliário no centro de Lisboa contribuíram para que a opção de abrir um restaurante recaísse na zona oriental da cidade, na fronteira com o concelho de Loures. “Como vivíamos aqui perto e passávamos constantemente por aqui, começámos à procura. A busca pelo sítio mesmo começou em maio do ano passado”, refere.

Acabaram por se decidir pelo nº. 62 da Estrada de Moscavide, um espaço que estava fechado mas que já tinha acolhido várias cozinhas de diferentes partes do mundo e que tinha quase todo o material necessário para Ramia e Alan avançarem com o negócio.

Ainda assim tiveram de fazer alguns investimentos consideráveis para adaptar o espaço às necessidades da cozinha síria. As bandejas prateadas onde servem o chá e algumas peças decorativas da sala de refeições, são tradicionais e chegaram ao espaço vindas da Turquia. Mas há também muitos outros pormenores a personalizar o espaço com selo português, como os suportes em cortiça para os guardanapos ou o símbolo do restaurante em metal, provenientes de start-ups, de norte a sul do país.

Ramia e Alan não são os únicos sírios que trabalham no restaurante, empregando duas refugiadas do mesmo país, que prestam serviço na cozinha, ajudando Ramia, que além de ser a cozinheira é também a responsável pela gestão do Tayybeh.

“Fiquei com a parte financeira também porque o Alan não gosta dessa parte, e encarregue da gestão”. Uma tarefa que começou ainda com o catering, onde Ramia tomava conta de todos os passos do processo. “Aí eu já tratava de tudo: das faturas, dos emails, dos clientes, das encomendas e do serviço”. Mas agora a gestão é diferente. Equilibrar o stock de produtos, os balancetes e a contabilização do custos dos pratos e dos que são mais vendidos são desafios acrescidos.

Alan acompanha parte da jornada, uma vez que a acumula com outro trabalho.

“Eu trabalho numa empresa portuguesa, mas faço o horário do Médio Oriente: começo às 4h e termino às 14h, durmo e venho para aqui ajudar”, diz Alan.

Inicialmente abriam apenas para jantares, mas com a crescente afluência de clientes, estão agora também abertos para almoços, encerando ao domingo.

Mas o objetivo de Ramia e Alan é que o Tayybeh, com o tempo, se imponha, não só como restaurante, mas como uma referência da cultura síria em Portugal.

“Os portugueses gostam de falar. Gostam de falar da Síria, da política, de tudo. E eu sinto que não estou só a servir a comida, estou a servir a cultura síria”, explica Alan, que quer dar a conhecer aos portugueses a singularidade da Síria no contexto do Médio Oriente, através da diversidade da sua gastronomia e a história de um país que tem na sua capital, Damasco, uma das cidades mais antigas do mundo.