Para nos referirmos a ela inventamos palavras mais ou menos suaves e ainda falamos com rodeios. E não ajuda o facto de muitas mulheres ainda não conhecerem intimamente a sua anatomia sexual, dizem as pesquisas. Mas, até para bem da saúde, já vai sendo tempo de nos familiarizamos com ela de forma mais descomplexada.
‘O que não tinha nome’: não é de uma espécie de primo afastado de Lord Voldemort, o vilão de Harry Potter, que fala Sylvia de Béjar num dos seus primeiros capítulos do seu livro ‘O sexo no feminino’ (Planeta). A autora espanhola, jornalista e especialista em Sexualidade Humana e Educação Sexual, disserta sobre o ancestral pudor em chamarmos a vagina pelo nome, como se pensar nisso já fosse suficientemente constrangedor. Não admira que para falar dela se tenham inventado eufemismos que por cá vão do infantil “pipi” à arcaica “boca do corpo (ou boca da natureza)”, passando por termos brejeiros com uma curiosa analogia animal – periquita, patareca, passarinha. Podemos até achar que esta riqueza vocabular é sinónimo do respeito e importância que lhe damos, mas parece que é exatamente ao contrário.
“Para muita gente, o léxico sexual convencional é profundamente insatisfatório”, escreve Catherine Blackledge em ‘A História da V’ (Lua de Papel), um genial tratado sobre a vagina escrito de uma perspetiva histórica, social e antropológica:
“Vulva, reclama-se, é muito clínico, enquanto vagina, murmuram outros, tem muito de passividade. Rata e outras expressões da gíria sofrem por carregarem um forte estereótipo sexual…”
Para complicar, nem sempre os termos relacionados com a anatomia sexual feminina são interpretados da mesma maneira, diz ainda. “Vulva descreve, geralmente, os genitais femininos externos, mas nem sempre, ao passo que vagina pode incluir todas as partes da anatomia sexual feminina, com a exceção do útero, ou referir-se especificamente ao órgão interno muscular.”
Um “continente negro”
A forma como as diferentes sociedades falam (e falaram) da vagina também explica muito sobre como a encaram, seja ela “elogiada ou vilipendiada do ponto de vista sexual”, argumenta Blackledge. Falar em ‘partes púdicas’ faz referência ao latim ‘pudere’, ou sentir vergonha. Num registo mais próximo do alemão atual, “termos para os genitais femininos incluem schamsheide (literalmente, ‘bainha de vergonha’)…” Nem sempre foi assim, no entanto: na Antiguidade Clássica, gregos chamavam-lhe aidoion, qualquer coisa como “partes que inspiram espanto ou respeito”.
As palavras importam porque carregam consigo preconceitos, ideologias, posições políticas. Falar de ‘genitais’ ou ‘genitália’ é mais confortável e científico, mas também reduz a vagina à sua função reprodutiva, argumenta a autora:
“É significativo que essa terminologia omita toda e qualquer referência a esses órgãos igualmente como órgãos de êxtase e prazer, capazes de produzirem orgasmos, além de bebés.”
As mulheres ainda crescem ensinadas a evitar a exploração da sua sexualidade. Sylvia de Béjar acredita que, neste aspeto, os homens começam com vantagem. “Desde o princípio, o seu pénis está lá, à vista, aliado e companheiro de fadigas. Embora seja só por necessidades fisiológicas, tocam-lhe várias vezes ao dia e familiarizam-se com ele. Há mais: não tardam em dar-se conta da sua importância, se até os crescidos o admiram! Perante a virtude considerável dos seus filhos, não é raro ouvir os papás celebrar: ‘olha como este chavalito está bem dotado. Vai fazer mais de uma feliz!’ São os mesmos progenitores que, ao terem uma menina, costumam ocultar-lhe – ou omitir, que é igualmente grave – que ela também tem um sexo do qual deve orgulhar-se e desfrutar… não vá acontecer que aprenda a utilizá-lo e algum desalmado a meta na cama e/ou a engravide. “Os órgãos sexuais femininos são mais escondidos e menosprezados.” A nossa sexualidade é um mistério, o desconhecido, o continente negro, como diria Freud. Entre as nossas lindas pernas esconde-se algo ofensivo, inominável, vergonhoso.”
Para acabar com a vergonha
Não surpreendem, por isso, os resultados de um inquérito de 2016 feito no Reino Unido pela organização The Eve Appeal, que apoia a investigação dos cancros femininos. A iniciativa pretendeu servir como consciencialização para o cancro dos ovários, o cancro ginecológico que mais mata no Reino Unido. A pesquisa apurou que só metade das mulheres entre os 25 e os 36 anos conseguiram identificar corretamente a vagina. Entre as mulheres dos 16 e os 25 anos, 65% não se sentiam confortáveis a usar as palavras vagina ou vulva, 40% prefere usar expressões como ‘partes íntimas’ para discutir a sua saúde ginecológica e apenas menos de quarto acredita estar bem informada sobre ela. Mais de 10% confessaram evitar falar de preocupações com a saúde sexual com o ginecologista por embaraço. Conhecer e estar à vontade para falar da anatomia sexual é, por isso, também uma questão de saúde que, em última análise, até pode salvar vidas.
Para que mais mulheres se familiarizem com o seu aparelho sexual, a portuguesa Teresa Almeida, designer e a fazer doutoramento na Universidade de Newcastle, Reino Unido, desenvolveu o projeto de uma aplicação para telemóvel a que chamou Labella, num projeto de tecnologia ao serviço da Saúde que começou por se enquadrar na prevenção da incontinência urinária. A app vem acompanhada de uma peça de lingerie inteligente, cuecas feitas num tecido high-tech, que devem ser usadas para acionar o ecrã touch do telemóvel. Este passa então a mostrar ilustrações da zona do períneo e modelos da musculatura pélvica, dá a conhecer os nomes corretos dos órgãos sexuais e suas funções e exemplifica como exercitar os músculos do pavimento pélvico através de movimentos Kegel.
Enquanto fazia as primeiras pesquisas para a Labella, Teresa deu conta da quantidade de mulheres que usavam eufemismos para falarem da sua vagina. “A lista de nomes que designam os genitais femininos parece interminável e chega a roçar o ridículo”, escreve na apresentação do seu projeto num artigo para The Conversation. “Com metáforas e eufemismos vaginais que retratam a vagina como assustadora, feia e fora de limites, não admira que um grande número não consiga identificar partes dos seus próprios genitais. As pesquisas indicam que as mulheres tendem evitar o ‘contacto’ com seus genitais, a menos que sintam dor, e outras ainda mostram que evitam falar das suas ‘partes privadas’, mesmo com outras mulheres. Isto significa que elas não falam dos seus genitais por causa da visão que a sociedade tem sobre a vagina, basicamente como algo sexualizado e envolto em mistério.”
Nos célebres ‘Monólogos da Vagina’, Eve Ensler deu voz às mulheres, emprestando-a a este nosso órgão sexual. A bem da saúde feminina e de uma sexualidade bem resolvida já vai sendo tempo de transformarmos os monólogos em diálogos e de a tratamos por ‘tu’.