Sim, Dan Brown está a pensar escrever um livro cuja história irá passar-se em Portugal. A resposta foi a primeira de uma várias realizadas pelos cerca de 1.5 mil fãs do escritor norte-americano, na apresentação do seu mais recente livro, Origem, este domingo, dia 15, no Centro Cultural Belém, na primeira vez que o autor de O Código Da Vinci incluiu Portugal na sua digressão mundial. A possível ficção já terá até um título, Sintra’s Cipher, o que coloca Sintra definitivamente no roteiro do universo pop, após ter sido cogitada como nova morada de Madonna.

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Se a Bíblia ainda é o livro mais vendido do mundo, Dan Brown segue incansável na luta para se consolidar como seu principal concorrente. E assim como em qualquer ramo de negócio, o segredo parece passar em copiar a estratégia do rival. Em Origem, o escritor norte-americano volta a repetir a fórmula que lhe conferiu fama e fortuna desde O Código Da Vinci, ao confrontar em forma de um thriller o modus operandi da Igreja Católica, como se o próprio autor não se utilizasse dos mesmos expedientes em busca de aumentar o já numeroso rebanho de leitores.

Como não fazia desde o O Código Da Vinci, Dan Brown entrou em digressão internacional de promoção de Origem no início de outubro. Nesta terça-feira, dia 17, o escritor lança mundialmente o quinto livro da saga capitaneada pelo professor de simbologia e iconologia de Harvard, Robert Langdon, em Barcelona, palco de maior parte da trama. A última escala antes do evento na capital catalã foi justamente em Lisboa.

Assim como os anteriores quatro livros protagonizados por Robert Langdon, Origem entrega o que promete ser um misto de entretenimento, guia de viagem e resumo dos exames nacionais. Em mais de 500 páginas, o best-seller volta a confrontar os dogmas católicos, como fez quando pôs em xeque o status de Jesus como celibatário sem herdeiros. Agora, Dan Brown aponta o microscópio da ciência para a origem e o destino da humanidade, sugerindo que a história do homem vir do pó ao pó deve imediatamente retornar, ao apostar ainda não propriamente num fim apocalíptico, mas integrado.

Para isso, o autor mais uma vez escreve certo pelas linhas tortas da narrativa dogmática que adotou com fé cega. Na bíblia de Dan Brown, a santíssima trindade é composta por uma teoria da conspiração (a já mencionada origem do homem), um génio da arte (desta vez com Gaudí no papel que já foi de Da Vinci e Dante), e um destino turístico, no caso Barcelona, o que lhe garante um ar profético, afinal, nos últimos meses poucos lugares do mundo estiveram tanto sob os holofotes dos media como a capital catalã, sacudida por atentados terroristas e manifestações separatistas.

Para entender a liturgia da literatura de Dan Brown é preciso conhecer a “origem” do autor, revelada em tom de confessionário na forma de um púlpito instalado no imenso palco do auditório do CCB. Em pouco mais de meia hora, o escritor contou que o pequeno “Dan” foi criado numa família composta pela mãe religiosa e o pai matemático, um encontro paradoxalmente decisivo para que o adulto “Dan” vivessem no fio da navalha entre a ciência e a metafísica.

Origem também ressuscita das velhas escrituras dos livros de Dan Brown os mesmos personagens

Dois episódios da biografia da infância de Dan Brown parecem ter sido decisivos para que a balança pesasse para o lado paterno: o primeiro, quando ele perguntou a um pároco local o que estava certo, a ciência ou a religião, e ouviu como resposta que “bons meninos não fazem esse tipo de perguntas”; o segundo, mais trágico, durante o velório de uma amiga de 11 anos que havia morrido de leucemia e ouviu o padre na câmara ardente dizer que a morte da miúda fazia parte “dos planos de Deus”. Naquele momento, o futuro escritor tinha certeza que não concordava com tais “planos”.

Origem também ressuscita das velhas escrituras dos livros de Dan Brown os mesmos personagens, mas com NIFs diferentes: o cadáver que esconde um importante segredo, o obstinado e frio assassino movido pela fé, o destemido e determinado policial incorruptível, a brava e bela mulher, os figurões de altos escalões da igreja e do governo, além de códigos, dezenas deles, devidamente elucidados por Langdon.

Como a Igreja Católica, Dan Brown lentamente abre concessões progressistas em Origem. Não só a produção contemporânea passa a compor a ementa das indefetíveis aulas de história das artes, como agora o simbologista divide os méritos dos insights entre o seu abençoado inteleto e a inteligência artificial de um super-computador. Há outras tentativas “modernas”, como o assassino usar um Uber na fuga, ou a intenção de se tocar no tabu religião-homoafetividade, ambas meio forçadas, mostrando que, também na literatura, de boas intenções o inferno está cheio.

A participação feminina, assim como nas narrativas religiosas, segue em segundo plano

Se a tecnologia tem papel relevante na voz do computador Wiston – Dan Brown sugere inclusive que Hugh Grant deva dobrá-lo na inevitável versão do cinema – a participação feminina, assim como nas narrativas religiosas, segue em segundo plano. A beldade, Ambra, é até apresentada como a forte e independente curadora do audacioso Guggenheim de Bilbao, mas aos poucos o autor desloca-a para o papel secundário feminino das suas obras, apenas para estar no lugar certo e fazer a pergunta certa. Ambra acaba até de certo ponto punida pela ousadia de tentar ser uma mulher diferente, antes de generosamente lhe ser concedida um final de contos de fadas.

A trama de mais de 500 páginas decorre em menos de 24 horas, nas quais o protagonista empreende um tour de force contra inimigos poderosos a receberem ordens emanadas de corredores sombrios em palácios reais e catedrais. Sempre a puxar a rapariga pelas mãos e guiado pela voz de Hugh Grant, o simbologista precisa de descobrir uma senha de 47 caracteres – isso mesmo, 47! – capaz de destravar o computador do futurologista Edmond Kirsch, um perspicaz ateu e nerd empedernido – ou vice-versa – morto por ameaçar revelar a verdadeira origem e o destino da humanidade.

Aos não-iniciados em Dan Brown, Origem pode abrir as portas às frenéticas aventuras do simbologista, pois a trama não se relaciona com os livros anteriores. É a chance de conhecer a literatura de verniz erudito e conteúdo superficial, construída através de capítulos curtos e habilmente encadeados, a garantir uma leitura difícil de largar. Aos antigos fãs, não há nada a temer: Robert Langdon continua o pastor ideal a conduzir os milhões de seguidores em busca das verdades que a Igreja teima em esconder, independente de fazer ou não parte dos “planos de Deus”.

Álvaro Filho