#ElesNão (Machismo nunca mais)

Quando o feminismo se torna moda, as mulheres parecem (parcialmente) dispostas a uma inédita unidade e a igualdade de género ganha realce como nunca antes neste século XXI, estes pouco anos de luz são imediatamente escurecidos pelo modo aconchegado com que países ocidentais variados dão as mãos ao populismo, ao fascismo, à extrema-direita. O Brasil é apenas o sabor do dia. Que direitos da minoria “mulheres” põe em causa estes neo-totalitaristas?

Em 2016, os norte-americanos escolheram um presidente assumidamente misógino e predatório. Na Europa, a par de uma Polónia, Áustria e Hungria crescentemente conservadoras, a Itália volta aquilo que tão bem conhece, através da eleição da coligação fascista liderada por Matteo Salvini. Bolsonaro é apenas mais desbocado: diz o que pensa, faz tábua rasa de todos os direitos fundamentais que derivam do princípio universal da igualdade e propõe-se a eliminar os “vermelhinhos” opositores – a tiro, a tortura, enfim, na ditadura. É, na verdade, o que todos estes governantes fazem: propagação do ódio e destilar veneno perante os “diferentes”. Sublimam as sua nações perante todas as outras e fecham-se na concha do proteccionismo e do autoritarismo. E o que vem neste pacote especificamente para nós, mulheres? Imaginando uma jantarada com estes comensais, acho com plena honestidade que todos responderiam “a cozinha”. Só que o modelo decorativo actualmente em voga é a cozinha americana, em open space e portanto com propagação vida afora. Na prática, o que é que a extrema-direita pretende de nós? Ou, devo dizer, para nós.

Em primeiro lugar, é importante pensarmos nos números. A igualdade entre mulheres e homens, os direitos das mulheres, ainda é questão que se coloque na categoria dos direitos das minorias? É que segundo a ONU, com dados de 2017, dos mais de 7 biliões de seres humanos que habitam o planeta, o número de homens apenas ultrapassa em 57 milhões o número de mulheres. E, atenção, na Europa e na América do Sul, a minoria são os homens: por cá a média é de 92 homens por cada 100 mulheres, e no sul da América de 98 homens por cada 100 mulheres. Em Portugal as mulheres ultrapassam em 500 mil o número de homens. Minoria? Já não somos. A única coisa minoritária na relação de géneros é a educação, a informação, o tratamento social aos elementos do género feminino.

Depois, em segundo lugar, devemos reflectir sobre o que fazemos com o nosso voto, direito a tão duras penas conquistado. É que se populacionalmente, a coisa está mais ao menos nos 50-50, há uma quantidade esdrúxula de mulheres a votar em candidatos misóginos. Et voila, eis a questão.

Valerá sequer a pena recuar ao tempo das Sufragistas, para relembrar que o direito de voto das mulheres é coisa de antes de ontem, na cronologia da humanidade? Que não tem mais de um século? É um direito quase embrionário, temporalmente falando. Em Portugal, só após a revolução de 74 é que podemos votar. Aliás, no nosso país só com o Código Civil de 1977 é que passámos a ter direito ao divórcio, a ter emprego sem necessidade de consentimento escrito do pai ou do marido (ou do filho, veja-se), a viajar para fora do país sem necessidade de companhia ou do mesmo tipo de autorização.

E direitos hoje tidos como óbvios, relativos à saúde, ao acesso à educação, ao mercado de trabalho?

Na Europa e Estados Unidos foi a mobilização masculina para o esforço das guerras mundiais que implicou o ingresso das mulheres no mundo do trabalho. Na América do Sul foi preciso esperar até à década de 70. E ainda assim, as escolhas profissionais permitidas eram – não são ainda? – limitadas. Ainda em 1968 as activistas americanas deitavam sutiãs no chão à porta do Miss America, contra a estereotipização – embora ninguém os tenha queimado como reza o mito, que eram peças caras, os sutiãs. Por estes dias de constantes greves da CP, vi-me forçada a viajar de autocarro expresso e, pela primeira vez nos meus 40 anos de viagens pela minha terra, vi um autocarro de longo curso ser conduzido por uma mulher. Em Janeiro de 2019 entra em vigor entre nós a lei que obriga à igualdade salarial entre homens e mulheres. Porque sem que a lei obrigue, nada feito.

Noutro polo dos direitos femininos, coloca-se a legalização do aborto. O mapa mundo mostra um hemisfério norte que aceitou a interrupção voluntária da gravidez, questão essencial de saúde pública e das mulheres. A sul, um mar de proibição. Mas este também é um direito que ainda está na fase do infantário: só em 1920 houve país que o legalizasse (a URSS, que não iluminou o caminho democrático de ninguém, verdade se diga). Segundo a OMS- Organização Mundial da Saúde, realizam-se anualmente cerca de 46 milhões de interrupções voluntárias de gravidezes, estimando a organização que por volta de 19 milhões são realizados clandestinamente (por serem proibidas nos seus países) e deles resultam 70 mil mulheres mortas e 5 milhões de mulheres com sequelas permanentes.

Podia aqui continuar ao desafio, relatando este fado que me é inconcebível. O meu feminismo é efectivamente igualitarista: os mesmos direitos e deveres para todos os seres humanos, independentemente do género, raça, sexualidade, religião e todas as construções sociais que perdemos tempo a edificar e a preconceituar. Mas provado está que sem imperativos legais a sociedade não muda.

O meu ponto não é pretensioso, não faz a redescoberta da pólvora. Da perspectiva de alguém que não valoriza um género sobre o outro, há todo um conjunto de preocupações comuns e uma tremenda ausência de memória que parecem estar na base destas escolhas eleitorais: antes a ordem e a vitalidade económica do que a saúde social. Só que, para todo um género que em quantidade se equivale ao masculino, permitir o acesso ao poder a governantes misóginos, machistas, é um retrocesso gigante. A qualidade do nosso estatuto degrada-se para níveis que farão lembrar a queimas das bruxas – sempre mulheres demasiado inteligentes, demasiado poderosas, demasiado progressistas – pela Inquisição dos Homens. Que com “h” maiúsculo significa Humanos = homens + mulheres.

Estes não. Eles não. Nunca, jamais. Machismo nunca mais.

Marta é consultora de comunicação