Pandemia foi licença para a indisciplina das crianças? Como resolver…

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[Fotografia: Istock]

O confinamento fechou portas à liberdade. Dentro de casa passou a morar a frustração e o desejo por dias melhores. Enquanto não chegaram, a necessidade de uma nova rotina familiar foi imperativa. Com os pais em teletrabalho, e as crianças mergulhadas num vazio ao qual não estavam acostumadas, cresceram, também, os medos sobre o futuro.

Os pais, entre reuniões e afazeres que os prendiam aos deveres da profissão, passaram a sentir-se culpados por uma ausência que, mesmo não sendo física, parecia colocá-los a quilómetros dos filhos. Em casa, um sítio que outrora era lar, montaram um escritório. Para entreter os mais novos recorreram, muitas vezes, à tecnologia.

As crianças, por sua vez, sentiram-se presas. Pela janela olhavam os jardins, quase sempre vazios, e dentro de casa suplicavam pela atenção que, em tempos, também era delas. A irritabilidade e o desânimo foram, quase sempre, o prato do dia. Os familiares, cansados, abriram mão de algumas regras para que, num cenário atípico, os dias fossem mais leves.

Posto isto, ficaram algumas questões no ar: Os pais erraram? Há maneiras de contornar os maus hábitos aos quais as crianças e jovens foram expostos?

Margarida Crujo, pedopsiquiatra, acredita que alguma permissividade por parte dos pais faz parte. “Acho preferível o cenário de uma mãe que, para conseguir concluir o teletrabalho que desenvolve, permite que o filho veja trinta minutos de televisão, do que o de termos uma mãe irritada, indisponível para a sua função parental”, explicou.

Quem corrobora esta ideia é a psiquiatra Joana Martins. Num gabinete aberto ao mundo, a especialista usa o Instagram, com quase 15 mil seguidores, para ajudar famílias. Ao Delas explicou que o aumento do tempo passado junto aos ecrãs foi um dos hábitos menos positivos a que a pandemia deu origem: “Nas crianças em idade pré-escolar, com o uso recreativo da TV e do tablet e em idade escolar, com o número excessivo de horas em telescola. Não se pode exigir a uma criança de 12 anos que permaneça online 6 horas por dia”.

Sobre as queixas que mais lhe têm chegado, a psiquiatra conta que é, sem dúvida, a “dificuldade na manutenção de rotinas” a mais frequente. Além do uso excessivo de tecnologia, a experiência de Margarida soma ainda comportamentos de “alguma agressividade”, capazes de gerar mal-estar entre os mais novos.

Segundo o estudo Repercussões da Pandemia de COVID-19 no Desenvolvimento Infantil, a nova realidade levou a que os mais novos se tornassem mais dependentes dos pais (36%) e desatentos (32%).

Sobre ser ou não possível reverter o aumento da irritabilidade e rebeldia, ambas concordaram que a idade é um fator importante. “De uma forma geral, pode também ser mais fácil mudar comportamentos de crianças mais pequenas, em idade pré-escolar, do que, por exemplo, de adolescentes com 13 ou 14 anos ou mais; o comportamento nos mais pequenos é mais maleável e mais passível de ser moldado”, detalhou a pedopsiquiatra.

A psiquiatra acrescenta, ainda, que “não há nada que não se consiga reverter, havendo vontade e empenho dos pais”. “Estamos à espera que os comportamentos de isolamento, os horários trocados, o uso de ecrãs e as ansiedades de contágio progridam naturalmente para a normalidade”, declara. Contudo, admite-se que, em alguns casos, exista a necessidade de ajuda profissional.

Alguns estudos citam, ainda, o “stress tóxico” como um fator determinante no (in) sucesso das rotinas familiares. Segundo os investigadores, o “stress tóxico” pode enfraquecer o desenvolvimento da arquitetura cerebral e trazer problemas a longo prazo. Também por isso, já estão a ser desenvolvidas investigações que se debruçam em estudar o efeito do stress em bebés filhos de grávidas confinadas.

Margarida Crujo deixa mesmo uma analogia: “para um peixe será mais fácil viver numa água límpida, que numa poluída; com os ambientes familiares passa-se o mesmo”. “Sem compreender bem a situação, [as crianças] reagem principalmente às mudanças que percebem no comportamento dos familiares e na sua rotina de vida”, pode ler-se num documento publicado pelo Núcleo Ciência pela Infância.

A má alimentação dos mais novos na pandemia

Um doce aqui, fast food ali, e a alimentação dos mais novos foi sendo alterada. Se a comida “nutricionalmente menos interessante” era deixada para dias especiais, no confinamento foi uma opção segura. Entre o teletrabalho dos adultos e a necessidade de acalmar os mais novos tudo era válido.

A boa notícia é que, à semelhança da rebeldia, também os hábitos alimentares podem ser colmatados. “O facto de as crianças terem sido aliciadas com doces para deixarem os pais trabalhar é verdade. Mas os erros do passado cabem no passado: em vez de discutirmos mais uma estratégia de entreter miúdos, quando os miúdos querem de facto a nossa atenção (e com razão), o mais importante seria refletirmos sobre a fusão de papéis que esta pandemia gerou”, partilhou Joana Martins.

Contudo, uma compensação não tem de ser uma coisa negativa. Para Margarida, as crianças e adolescentes têm, entre si, necessidades diferentes, mas é primordial sentirem que os pais estão atentos e os podem amparar. Por vezes, mesmo um doce, pode ser um gesto de conforto e não necessariamente algo nefasto. O erro reside nas famílias que fazem desta atitude sinónimo de indisponibilidade em relação às crianças.

Um fator a ser levado em consideração é o de que quanto mais tempo as crianças estiverem expostas aos ecrãs mais tempo enfrentam publicidade de fast food. Manobras minuciosamente criadas para captar a atenção.