A dupla vida de Clarisse acaba aos 40 quando tiver tudo o que sempre quis. A brasileira atende os clientes em vários apartamentos de Lisboa, entre as 10hoo e as 19h00. Depois disso, vai para a casa ter com os filhos e com o companheiro, que não sabem de nada.
Clientes são clientes, nada mais. Não há cá tratamento especial por serem muito ou pouco fiéis. Por mais que eles queiram beber um café com ela, combinar um almoço, uma saída, breve que seja, longe dos apartamentos de estores corridos e abajures à meia-luz. Clarisse não pode, nem quer. Ao anoitecer, volta para casa. Janta com os filhos e com o companheiro, dorme, levanta-se na manhã seguinte e finge que vai trabalhar numa empresa. Só não nos diz qual é o emprego fictício para não estragar a encenação. Até tem um amigo de confiança que atende um telefone fixo sempre que alguém procura por ela para dizer que agora não é possível, mas ela liga de volta assim que puder.
Custa-lhe mentir a toda a gente sobre o que faz. Mas é uma questão de hábito. Ou uma questão de não pensar muito no assunto. Se pensasse muito, estaria ainda hoje no Brasil, sem dinheiro e enfiada na casa da mãe com dois filhos para criar. Clarisse sempre foi assim, determinada. É ela que diz. Quando saiu de Goiânia, já sabia ao que ia. O divórcio foi o ponto de viragem. O marido ficou-lhe com tudo. Menos com os miúdos. E ele podia até querer tudo, menos a casa. Foi ela que pagou por cada tijolo, cada taco do soalho, cada mosaico da cozinha.
Dinheiro rápido é o objetivo dela. Não é para esbanjar sem pensar no que vem depois. É para guardar, para comprar casa, carro e tudo o mais o que for preciso. Poucas, mas mesmo muito poucas têm esse feitio. A esmagadora maioria estoura dois ordenados mínimos em menos de nada
Por mais que o tribunal decida o contrário, a casa é dela. Nem que volte a comprá-la. Só não pode ser aos bocadinhos. Não merece ter de comprar cada tijolo ou cada mosaico, que já pagou com o salário “mixuruca” que ganhava como caixa no Carrefour. Tem de ser de uma assentada. Deixou os filhos com a mãe, fez as malas, aterrou em Portugal e foi à procura daquele dinheiro que se ganha com “suor e trabalho”, mas que não demora uma eternidade a chegar. Disse a toda a gente que ia ter com os quatro irmãos que já estavam em Lisboa há uns bons anos. E depois logo se via. A irmã mais velha é a única que sabe, desde o início, que ela não iria deixar as coisas correrem ao acaso. Clarisse contou-lhe os planos e arrependeu-se. De cada vez que saía de casa, a irmã chorava como uma Madalena. Tem medo e tem vergonha mas, com o tempo, passou a chorar menos, muito menos. A choradeira não mudou nada, a irmã acabou por perceber.
Clarisse chegou a Portugal no princípio de 2010 e começou a trabalhar num bar de alterne, na região da Grande Lisboa. Nada de sexo. Pôr os clientes a beber foi tudo o que lhe pediram. Ela aguentou noites inteiras a Seven Up, ouvindo homens de todos os feitios a beber e a falar das mulheres deles, dos filhos, das chatices do trabalho, de tudo e de nada. Durante 11 meses trabalhou de noite, dormiu de dia, juntou um pé-de-meia, mas dinheiro a sério não acontece da noite para o dia. Pelo menos sem sexo, a acreditar pelo que lhe disse uma das “meninas” a trabalhar num apartamento: “Se queres ganhar muito e depressa, esse é o caminho mais rápido.”
Foi então à procura desse caminho e encontrou-o nos apartamentos de Lisboa que agora paga ao dia. Às vezes é no centro da cidade e outras vezes na periferia. Onde for mais conveniente para ela e para quem procura os seus serviços. Trabalha sozinha, não presta contas, nem divide os lucros com ninguém. “O dinheiro é bom, o sexo também, os dois ao mesmo tempo é ótimo”, diz ela, repetidamente, como se tivesse achado o lema de vida que melhor lhe assenta.
Outras mulheres, se calhar, não são capazes de dizer isso à descarada. Mas ela não tem qualquer problema. Dinheiro rápido é o objetivo dela. Não é para esbanjar sem pensar no que vem depois. É para guardar, para comprar casa, carro e tudo o mais o que for preciso. Poucas, mas mesmo muito poucas têm esse feitio. A esmagadora maioria estoura dois ordenados mínimos em menos de nada. Em cada cinco mil mulheres, quatro ou cinco serão poupadas e atinadas como ela, é o que diz. Talvez porque entrou já tarde nesta vida. Tinha 30 anos, quase a fazer 31, com idade para ter juízo, portanto.
Hoje tem tudo o que quer e não teve de esperar. Ao fim de um ano comprou uma casa, em Goiás, e trouxe os filhos para junto dela. Dois anos mais tarde comprou uma segunda casa e depois ainda outra, também no Brasil. Um apartamento é para o filho, com 15 anos, outro para a filha que tem 13 e o último para ela. Já não tem mais de se preocupar com o depois, nem tão pouco com os estudos dos miúdos. As poupanças chegam até à universidade deles. Mais uns anitos e não precisa de continuar a anunciar sexo nos classificados e na net com a idade aldrabada. “Quando chegar aos 40, acabou”. E até lá não precisa de se esfalfar. Tem um horário inflexível, das 10h às 19h, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Há dias muito ocupados com oito e nove clientes e outros dias quase vazios, com quatro ou cinco a preencherem a agenda organizada com antecedência sempre que possível.
As entradas e saídas do apartamento são tal e qual como as de um hotel, com épocas alta e baixa. Agosto é um corrupio, janeiro é fraquinho e fevereiro é um tédio de morrer. Não é motivo de queixume. Nem se atreve. Os clientes permitiram-lhe cumprir os planos tal qual os imaginou no Brasil. Quase sem esforço. Só lhe custa mentir, insiste. É o pior de tudo. Às vezes, “baixa um mau pressentimento de que um dia alguém vai descobrir”. Mas, logo depois, sacode o corpo para espantar o mau agoiro e atende mais uma chamada no telemóvel: “Oi, me conta meu bem, do que você precisa…”
Kátia Catulo