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Suicida-te antes de matar a tua mulher, não depois – 2017, um ano que não precisou nada de feminismo

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“Suicida-te antes de matar a tua mulher, não depois.” A frase não é minha. Li-a impressa numa T-shirt há muitos anos, quase 20, numa manifestação contra a violência doméstica, em Barcelona. Hoje podíamos usar a expressão de novo, porque este ano de 2017 foi, do início ao fim, marcado por episódios em que os homens mataram as mulheres, ou ex-mulheres, e se suicidaram:

Uma pesquisa no Google em castelhano dá-nos conta do mesmo fenómeno no país vizinho. La Sexta noticia uma história semelhante ocorrida esta quinta-feira, 28 de dezembro. O jornal La Vanguardia relata o mesmo em outubro. A lista podia continuar. E continuaria com casos no Brasil, com casos em toda a América Latina, no Reino Unido, nos Estados Unidos… no mundo. Um homem mata a mulher e suicida-se. E ligamos muito pouco a este facto.

Porquê suicidar-se depois de matar a mulher? O que é que preside à decisão de matar uma pessoa que já não quer viver com outra, e que a maltrata na maioria das vezes? Porque é que se ele não se vê a viver sem ela, também não a quer a viver sem ele? Quem lhe dá o poder de decidir que a vida dela não continuará sem ele, nem continuará além da dele? De onde lhe vem o poder para maltratar ou matar uma mulher? Mas, o que é que isso interessa? São só mulheres a morrerem às mãos dos maridos ou ex-companheiros, poucas mulheres (#WTF?), nada muito importante.

Acalmem as reações que este discurso não é contra os homens. É apenas contra aqueles e aquelas que insistem em ignorar estes factos documentados porque a sua realidade particular desmente os factos (#WTF?). Que eu oiça Bach todos os dias não faz com que todas as pessoas oiçam Bach, verdade? É a mesma coisa: só porque em minha casa nos ensinaram a igualdade desde pequenas, e a força, e o poder chegar onde quiséssemos se trabalhássemos para isso, e a jogar futebol com rapazes, e sermos donas do nosso corpo, não quer dizer que todas as famílias tenham ensinado todas as mulheres a serem assim. Só porque o meu pai nos disse mil vezes, sem chorar, que a primeira vez que um homem nos batesse seria a última, deixando muito claro que a violência doméstica é intolerável, não quer dizer que todas as raparigas tenham ouvido isto enquanto cresciam.

Os homens suicidam-se depois de matar as mulheres e não antes, provavelmente, porque não se imaginam a viver de outra forma – não são felizes, nem tristes, a vida é assim e não pode ser de outra forma, nem querem o vexame póstumo (#WTF) das mulheres lhes sobreviverem, de elas poderem voltar a ser pessoas inteiras sem eles.

E quem é que lhes disse isso? A cultura vigente. E a cultura somos nós que a fazemos. Quando escrevemos, sem querer, “coincidência” para dizer que um homem matou a mulher no aniversário do casamento (é assim tão difícil perceber que há aqui uma intencionalidade?) ou que outro disparou sobre o pescoço “por acidente” enquanto discutia com a mulher, estamos a contribuir para essa cultura vigente que menoriza os factos, diminuiu as mulheres e faz delas objeto de serventia dos maridos, das manadas, dos exércitos, dos governos.

Há pessoas que têm aversão ao feminismo como têm aos médicos. Como se, por ignorarem uma doença, ela não se instalasse e não matasse. O machismo mata mesmo, como se vê pelos exemplos acima. O feminismo não morde e o remédio que quer aplicar respeita a diversidade dos géneros: mas quer que mulheres e homens sejam tratados como iguais.

Podemos nós, que nos sentimos parte da cultura evoluída, erudita e igualitária, continuar a ficar ofendidos quando alguém aponta o dedo à cultura do homem macho e da mulher submissa, que é evidentemente forte em muitos pontos do país e do globo? E, #WTF, podemos ficar mais ofendidos com isso do que com cada morte de mulher, apenas porque é mulher?

2017 precisou muito de feminismo e nós devíamos ter feito muito mais.