Como salvar o casamento numa quarentena?

Man and woman sit separately on couch after fight
[Fotografia: Istock]

‘Amor e uma cabana’ – a casa – ou o ‘finalmente a sós’ e ainda o ‘tempo para a família’ são expressões com uma ideia idílica associada e que arriscam estar a ganhar, com a necessidade urgente de isolamento social devido ao Coronavírus, uma nova dimensão. Numa altura em que a quarentena leva casais com e sem filhos a conviverem permanentemente, sem contexto de férias, juntos, como vão sobreviver as relações a esta clausura que pode prosseguir para lá de 2 de abril? Os especialistas não avançam apostas sobre esta matéria.

Em todo o caso, notícias vindas da China, em particular da zona de Wuhan – local de início da pandemia -, têm reportado um aumento significativo no número de divórcios. E se muitos se podem ter devido ao facto de os serviços terem estado fechados, também é certo que o convívio forçado a dois, em espaços confinados e sem projetos definidos, pode ter contribuído em número para o aumento de trabalho reportados pelos funcionários dos registos civis chineses.

Por cá, ainda é cedo para traçar cenários. E os dados empíricos que se conhecem parecem acomodar uma realidade de aparente acalmia. Mas ela é isso mesmo, aparente, e pode não corresponder de todo à verdade.

Filipa Jardim da Silva crê que as “atuais circunstâncias adicionam tensão ao que pode ser um detonador para muitos casais”. Por isso, a psicóloga sustenta que os principais problemas podem “emergir da falta de comunicação eficaz, da predominância do papel parental sobre o papel conjugal, da perda de intimidade e cumplicidade e do desalinhamento de interesses, prioridades e projetos de vida”.

Falta de diálogo, de adaptação e álcool

Em tempo de clausura a dois – e mesmo com filhos – os perigos aumentam na proporção inversa do espaço confinado que se tem. E se o álcool pode ser, por vezes, uma solução empática no reencontro a dois, Ana Marques Lito lembra que se “pode tornar paradoxalmente adverso nestas circunstâncias, é mau conselheiro”. “É importante que os casais e famílias percebam que essas estratégias aditivas são de risco. Pode aparentar a possibilidade de se encontrarem saídas, mas são pseudo-saídas”, alerta a psicanalista de casal e família.

A terapeuta coloca a tónica no diálogo. “Os maiores perigos [em tempo de reclusão] passam pela hipótese de cada elemento do casal não dialogar de forma honesta com o outro e assim fechar a porta a partilhas importantes”, afirma.

Filipa Jardim da Silva elenca outras adversidades a dois em tempo de confinamento e às quais é preciso escapar. Há o perigo de “um ou ambos os elementos do casal não serem capazes de gerir de forma adaptativa o medo e tensão e tornarem-se mais reativos um com o outro ou se fecharem sobre si mesmos, e pela ausência de vontade de fazer as coisas funcionar e encarar esta proximidade forçada como um tempo de conflito e infelicidade”, vinca Filipa Jardim da Silva.

“Risco de vida ou pulsão de morte”, sublinha Ana Marques Lito. A psicanalista de casal e família explica que, nesta altura de pandemia, “uma e outra estão em luta e cada uma desencadeia reações, podendo atingir áreas de irracionalidade e gerando atitudes de desvalorização e de negação”. Por isso, diz a especialista ser tão importante ir à procura dos fatores que unem o casal. “A forma como cada um resgata as memórias e as motivações que os levaram a estar juntos é um dos pontos essenciais nesta fase”. “É preciso resgatar frases como ‘o que gosto em ti, o que mais valorizo em ti’”, pede.

Como diminuir zonas de fricção

Manifestações de algum cansaço e impaciência, que já começam a ser evidentes e que são fruto da situação de isolamento, em nada ajudam às relações. É urgente diminuir áreas de fricção, mas a pergunta é como?

Para lá das frases e atitudes proibitivas a ter quando o conflito está em crescendo, há questões práticas que ajudam a debelar a escalada de argumentos, de tom e, por vezes, decibéis. “É importante que o casal pense nas estratégias e organização da vida familiar”, pede a terapeuta familiar, sugerindo planos para, por exemplo, a ocupação do computador, quem toma conta do quê e quando, linhas diretivas para o trabalho doméstico em casa. “Tem de haver uma planificação da vida familiar e da distribuição de tarefas, potenciando o que de bom tem”, acrescenta. “A questão do tempo é muito importante”, vinca ainda, especificando: “Tempos distintos para estarem em tarefas, em família e em conjunto, os dois.”

Espaço para intimidade e otimismo

Filipa Jardim da Silva defende que “os principais desafios passam pela partilha de espaço permanente, pela alteração de rotinas, pela convivência forçada entre duas pessoas que podem ter perdido intimidade por entre dias cheios de afazeres e agora estão juntos num momento de tensão e incerteza”.

Ana Marques Lito, psicanalista de casal e família, considera que “é preciso ir à memória do casal, ir aos aspetos positivos, semelhanças e afinidades que os elementos tinham e que os levou inicialmente a ir ao encontro um do outro”.

É claro que a sobrevivência de uma relação a esta nova fase da vida em sociedade vai depender, em primeira instância, do perfil de cada um, como sublinha a terapeuta familiar. No entanto, há um ponto que merece ser destacado: “O otimismo ou o pessimismo podem definir o futuro de um casal, a forma como os elementos que o compõem fazem surgir o lado bom ou o lado mau de cada um, da memória que cada um guarda. Isso coloca-nos também em posições de sim ou não.”

Tudo isto sem negligenciar “a capacidade de manter as emoções”, de “criar o direito ao erro” e de “perceber que este isolamento pode ser um lugar de autorreflexão, de autogestão e de reaprendizagem”, conclui Ana Marques Lito.