Falta de critérios para Covid-19 pode criar “injustiça territorial”

Hospital corridor and doctor as a blurred defocused background
[Fotografia: Istock]

Com os números crescentes de infetados e mortos por Covid-19, em Portugal e o pico da pandemia apontado agora para maio e com os exemplos dramáticos que chegam de Itália e Espanha, a necessidade de criar uma lista de critérios para Portugal que defina quem poderá ser elegível para cuidados intensivos e ter acesso a um ventilador, devido à infeção por Covid-19, começam a fazer-se ouvir com veemência.

Sabe-se que a Ordem dos Médicos já terá um documento concluído, mas não foram, até ao momento, conhecidas as orientações que deverão guiar médicos mediante o expectável aumento de número de infetados por Covid-19 face aos recursos finitos. “Esperamos que não tenhamos de chegar a este ponto, mas é importante estarmos preparados para o que está a acontecer aqui ao lado – quer em Espanha, quer em Itália -, e termos essas regras definidas”, refere Ana Sofia Carvalho ao Delas.pt.

[Fotografia: Rui Oliveira/Global Imagens]
A investigadora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, acredita que a elaboração deste guião tenha de ser uma necessidade sob pena de se estar já a criar uma eventual “injustiça territorial”. “Imagino que os gabinetes de crise dos hospitais estejam a discutir isto, acho imprudente que isto não seja uma regra generalizada e pode colocar questões de injustiça territorial muito significativas”, antecipa.

Elemento do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Ana Sofia Carvalho refere desde já que este organismo ainda não foi chamado a pronunciar-se sobre nenhuma eventual lista de critérios.

E que regras se podem esperar?

Se Itália estabeleceu, entre outros critérios, o limite de idades para incluir ou excluir o acesso a tratamentos intensivos, a investigadora refere que essa medida definida pela Sociedade Italiana de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva (pode ser lida no original aqui) está a ser agora posta em causa pela sociedade civil e arrisca mesmo vir a ser alterada. Reino Unido, Bélgica, França e Espanha têm já também abordagens definidas, mas muito distintas entre si.

Por cá, crê a investigadora, é possível que predomine “a lógica de Medicina mais personalista, que é a que vigora em Portugal” e segundo a qual um factor como o da idade não pode ser, por si próprio, um critério. “A lógica da idade foi também clínica, mas não devemos olhar à doença, mas ao doente com a doença e se, mediante isso, é elegível para ventilador. Uma decisão tomada independentemente das suas características”, vinca a investigadora.

Ou seja, critérios clínicos como a margem de sobrevivência para lá da doença podem vir a ser fatores elegíveis a existirem em Portugal e mediante o aumento exponencial de contagiados. “Conhecendo os profissionais de saúde, penso que será essa que vigorará”, crê Ana Sofia Carvalho.

Quais as correntes e o que defendem

A investigadora refere que há três correntes que podem enquadrar esta nova realidade da pandemia. “Numa circunstância desta natureza, há três possibilidades: a primeira e que é completamente igualitária. Nesta, todos são iguais, todos têm exatamente o mesmo tipo de tratamento e pode ser posta em prática com a lógica de o primeiro a chegar ser o primeiro de ser atendido”, explica Ana Sofia Carvalho. A especialista lembra que, neste caso, “nunca poderiam nem deveriam ser feitas escolhas, o que nesta situação [do Covid-19] é pouco provável que venha a acontecer”.

Numa segunda linha, a utilitarista, prossegue a investigadora, “privilegiam-se as consequências da nossa ação em que algumas das das normas deverão ser tomadas no sentido de salvar o maior número de vidas possíveis, mesmo deixando algumas para trás”. É nesta corrente que se podem inscrever a escolha de critérios como a idade.

“Uma terceira perspetiva passa por salvar quem tem uma maior possibilidade de sobreviver, usando-se o diagnóstico para fazer algum tipo de triagem”, a corrente que possivelmente vigorará em Portugal.

Mas é sabido que o prognóstico do doente com Coronavírus piora a partir dos 65 anos, sendo quase de 50% aos 90. Por isso, que papel poderá vir a ter esse critério em caso de sobrecarga dos serviços? “Isso não pode ser”, atira Ana Sofia Carvalho, justificando: “Aí estamos a usar uma base utilitária”. “Tem de ser ser uma opção tomada numa decisão clínica, sobre quem tem uma probabilidade maior numa passagem para cuidados intensivos”, vinca.

Não é fácil, muitas vezes resulta em consequências graves para muita gente. É uma decisão que é sempre difícil e que deixa marcas terríveis“, lembra Ana Sofia Carvalho. E sublinha: “Têm de existir orientações porque as pessoas estão a começar a ficar esgotadas.”