Janne Teller: “Redes sociais e Internet estão a criar uma nova explosão de misoginia”

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Janne Teller [Fotografia: DR]

É escritora, e assume-me como uma provocadora, o que já lhe valeu a proibição da obra Nada, na Europa. E se o livro voltou ao prelo lá fora, o mesmo estreou-se em Portugal no final do ano passado. Em julho último foi a vez de A Guerra – E Se Fosse Aqui? ser adaptado a Portugal, transformando os portugueses em refugiados e levando-os a escapar de um regime que os persegue. Obrigando-os, sobretudo, a sentir na pele o que é ter de fugir das suas raízes e aprender a viver o fim de todas as certezas.

Foi a propósito desta ‘provocação’ que a dinamarquesa, de 54 anos e filha de pais imigrantes, falou ao Delas.pt. E Teller foi, como de costume, além das obras. Foi à política e à economia, áreas nas quais trabalhou no passado e em várias missões de paz, resolução de conflitos e ajuda humanitária ao abrigo nas Nações Unidas (ONU) e como conselheira da União Europeia (UE). Funções que abandonou há mais de duas décadas e que trocou pela literatura.

Sem meias palavras, a autora perspetivou como as redes sociais vão ser o próximo e maior ataque às mulheres e deita um olhar atento sobre o mundo, onde não falta a análise que faz ao secretário-geral da ONU, o português António Guterres. “Em algum ponto, ele terá de enfrentar os Estados Unidos da América. São tempos difíceis”, antecipa a antiga consultora, que considera tratar-se do “homem certo para o lugar”.

Escreveu A Guerra – E Se Fosse Aqui?, em 2001, agora a adaptação chega a Portugal. À data, pensava que a ideia de base do livro poderia manter a atualidade, 17 anos depois?

Inicialmente, foi apenas um ensaio para uma revista, quando a Dinamarca começou a tornar-se muito à direita. Tivemos uma eleição e subitamente tínhamos um governo de direita que se tornou contra os estrangeiros, particularmente imigrantes muçulmanos. Na altura, não conseguia imaginar que a situação poderia piorar, como vemos hoje. Eu própria chego de uma família imigrante europeia.

 

Há muito neste livro que, sendo uma adaptação a cada território, conte um pouco da sua história?

Não é a minha história pessoal.

Falo a nível emocional.

Senti, de forma muito veemente, a animosidade que se começou a gerar contra os imigrantes na Dinamarca porque sei, pela minha própria experiência familiar [n.r: a mãe da autora era austríaca e chegou ao país nórdico logo após a Segunda Guerra Mundial, com a Cruz Vermelha, e o pai vinha da Alemanha], que a situação política força as pessoas a fugir ou a mudarem-se, o que nunca é uma decisão desejada. É forçada. E eu precisava de dizer isto aos dinamarqueses. Eles vivem tão confortavelmente há tantas gerações que não podiam compreender os refugiados que estavam a chegar.

O que era importante dizer-lhes?

Ninguém deixa tudo o que tem e a família por vontade própria, fazem-no porque não há alternativa. Quando emigramos, somos privilegiados porque podemos sempre voltar à nossa plataforma, é uma situação que se deseja, no caso dos refugiados não. Provavelmente, não verão as suas casas de novo, os amigos, a família, e não tem meios económicos. Levam o pouco que têm e pouco mais. Queria que as pessoas sentissem o que é esta perda de controlo da vida. Subitamente não têm escolhas, estão nas mãos dos outros, talvez traficantes, ladrões, estão entre autoridades, não escolhem os campos ou as terras para onde vão. Há uma perda de identidade porque ela, uma vez mais, depende da nossa vida social. Também se perde o reconhecimento da educação e da formação, da língua. Perde-se tudo.

“Queria que as pessoas sentissem o que é esta perda de controlo da vida”

E, na adaptação a Portugal, porque escolheu virar do avesso a vida de uma família de classe média alta?

Aqui, escolhi, de propósito, uma família de classe média alta, académica, que vivia segundo padrões sociais elevados e tinha, por certo, tudo o que lhes pertencia. E, de repente, veem-se numa outra língua, cultura, não conseguem comunicar. Estão sem nada. E isso podia acontecer com qualquer um de nós. Como nos sentiríamos se fossemos nós?

Porque leva as pessoas a fazer este exercício procurando virar-lhes a vida do avesso?

Não podemos pensar nesta questão de forma abstrata. Acredito que a literatura pode dar-nos a opção de olhar, por um momento, para uma vida que não é a nossa e que nunca será. Mas, por um instante, vivemos, fazemo-lo 100% na nossa imaginação, também a sentimos na pele.

Quando lemos o livro ficamos com a ideia de que uma vez refugiado, refugiado para sempre, como se fosse uma história que nunca vai acabar para aquelas pessoas.

É mais ou menos assim, difere muito se se pode ou não voltar. Os refugiados não têm escolha e de todos os que tenho conhecido e conversado ao longo de anos, todos querem voltar a casa e muitas vezes, já depois de a guerra terminar, já não há casa para ir, já não reconhecem a paredes. Portanto, uma vez refugiado, fica-se algo preso… mas depende muito. Nos Balcãs, há pessoas que fugiram mas depois conseguiram voltar às suas comunidades. Foi a exceção. Na maior parte dos sítios isso não acontece.

“Os refugiados não têm escolha […] todos querem voltar a casa e muitas vezes, já depois de a guerra terminar, já não há casa para ir, já não reconhecem a parede”

Olhando para a sua experiência profissional como antiga consultora para a União Europeia e para as Nações Unidas, o que estamos a fazer mal?

Temos de ter uma visão a vários níveis. E o que sabemos há muitos anos é que temos uma política económica injusta, uma política ambiental concentrada: muitos ficam mais pobres, outros enriquecem. Esta desigualdade crescente irá, a um determinado ponto, fazer rodar o ponteiro da balança. Encontramos milhares a atravessar o Saara, a quererem chegar ao Mediterrâneo e nem sequer sabem nadar, põem a vida em risco para chegarem aos países europeus. Quão terrível é viver nos sítios deles? Isto tem de mudar. A dez ou 20 anos podemos mudar, o que, claro, também nos vai custar conforto.

Mudar o quê?

Estudei Macroeconomia durante anos, temos de ir contra o liberalismo do comércio injusto. Temos de parar de apoiar ditadores e regimes autoritários porque criam mais gente que se refugia. A breve prazo, e acho que é uma obrigação humana, temos de ajudar aqueles que se refugiam e que fogem, que não têm hipótese de sobreviver e dar-lhe uma possibilidade de terem um processo de integração decente. Por outro lado, ninguém tem a possibilidade de enriquecer devido ao trabalho normal. A única forma de o fazer é através da especulação em algo distante da realidade, o jogo das vidas das pessoas. É um sistema maluco, injusto e não sustentável em que uns ganham e muitos perdem. Como um dominó, já não podemos ter um trabalho, ganhar salários decentes, poupar um pouco, salvaguardar o futuro dos nossos filhos e aí sim, dar um salto. Isso já não funciona assim.

Todos contra todos?

Exatamente. Depois, chegam os partidos de direita que alegam que a culpa é dos imigrantes e dos refugiados e os eleitores não têm tempo de perceber que os mecanismos são outros.

Quais são?

Eles votam nestes partidos porque sentem que perderam o controlo das suas vidas, dos desafios económicos, vivem em áreas em que não têm bons serviços, sem o conforto da vida moderna. Portanto, deve haver preocupação para que as pessoas se sintam seguras e mudar a retórica política.

“ninguém tem a possibilidade de enriquecer devido ao trabalho normal. A única forma de o fazer é através da especulação em algo distante da realidade, o jogo das vidas das pessoas”

Pegando no exemplo da literatura que a Janne aplica a esta realidade dos refugiados, se eu ajudo uma família, o que tenho eu de fazer também junto de que manda para que não promova o aparecimento de mais uma?

Temos de votar em políticos que definem políticas a pensar no longo prazo, eles dependem dos votos. Por vezes, consideramos que estes assuntos são demasiado grandes para nós. Também podemos organizar-nos em plataformas. Muitas pessoas juntas, em massa, por uma ideia podem alterar políticas. Isso aconteceu com os miúdos da fronteira do México com os EUA. Essa política foi mudada porque houve demasiados protestos. Esta é a prova de que é possível, de que a política não se mantém no poder se vai contra o interesse do povo. Não podemos ficar calados perante o que está errado. A direita tomou conta da agenda e dos assuntos dos refugiados. A esquerda deixou a agenda para a ala direita e para a propaganda mentirosa. Temos de recuperar isto e em voz alta.

Refugiadas são mais do que mulheres passivas

Que medidas concretas dava hoje, em julho de 2018, à União Europeia e aos Estados Unidos da América?

Começava por lhes recomendar que mudassem as políticas a longo prazo, para serem mais justas. Um sistema de comércio mais justo. Por exemplo, os países em desenvolvimento vendem matérias-primas, mas, sempre que conseguem fazer um produto mais elaborado, impomos restrições e quotas. Ou seja, queremos que eles se desenvolvam e produzam matérias, mas, assim que dão o salto, restringimo-los porque podem competir connosco. Assim, estamos a parar o desenvolvimento e não podemos esperar que estes países tenham economias melhores, se a máquina de troca não mudar.

Mas isto terá custos…

Isto vai trazer um custo aos países desenvolvidos, à Europa, mas é uma necessidade. Temos de encontrar uma solução em que todos possamos conviver, e de longo prezo, de 10, 15 a 20 anos. A breve trecho, temos de receber os refugiados, de os apoiar, de os tratar dignamente. Claro que não podemos receber todos os imigrantes e dar-lhe uma vida digna, mas podemos ajudar a melhorar as condições nos seus países de origem, eles não vão querer imigrar. Portanto, temos mesmo de trabalhar a vários níveis.

E ainda há a questão e o choque cultural.

Muitos pensam que sabem o que é o islamismo, e não sabem. Cada religião tem milhões de seguidores e muitas interpretações. A maioria dos muçulmanos no mundo quer viver tão em paz como os outros. Aliás, com 20% da população a ser muçulmana, e seguindo o raciocínio, quão mau, então, seria o planeta? (risos) Temos de parar de discutir quem é que segue o Deus certo e errado. Para que as sociedades democráticas funcionem, é preciso perceber o que é necessário, a um nível concreto.

Como por exemplo?

Já não é importante saber quem acredita no quê, se vai uma mesquita ou a uma igreja. O que é importante é saber que temos direitos humanos básicos, que homens e mulheres têm de ser tratados de forma igual, podem ir à escola. Por exemplo, sendo eu publicamente de esquerda, acredito na proibição das burkas porque esta cobre a identidade das mulheres. E cheguei a esta conclusão depois de falar com muitas muçulmanas minhas amigas.

“[A questão da proibição ou não das burkas] não é uma discussão religiosa, é uma discussão prática da nossa sociedade”

Como?

Inicialmente, era contra a proibição, mas mudei de opinião. Para que uma sociedade moderna funcione, o reconhecimento facial é a forma que usamos para interagirmos. Podemos usar o nikab, a burka em casa, mas se quereremos estar em sociedade, temos de interagir. Se vou aos países em que é permitido, não posso ir de calções. Quem me convenceu a ver isto de forma diferente foi uma amiga muçulmana egípcia. Se olharmos para isto como uma busca da identidade das mulheres do Médio Oriente, a questão ganha outros contornos. E também podemos pensar se será confortável que estas mulheres cubram as faces, deixarmos de saber quem elas são… Isto não é uma discussão religiosa, é uma discussão prática da nossa sociedade.

Multa por usar niqab na Dinamarca pode ser quase o dobro da multa por assédio em França

Não podemos entrar nestes estúpidos debates, mas antes nas questões práticas. Temos de equilibrar as situações e na forma como as coisas podem ser ajustadas. Curiosamente, quando comecei a trabalhar sobre as adaptações de A Guerra em vários territórios percebi que os homens comportam-se, vestem-se e apresentam-se de forma similar em todo o lado, mas as mulheres não. Há todo um conjunto de regras sobre como se devem comportar, vestir, sobre o que podem e não fazer mesmo em sociedades livres, até as expectativas sobre as mulheres são maiores do que as sobre os homens. A integração para os homens é sempre mais fácil. Há sempre o acesso natural para eles, mas não para elas.

Os movimentos pela igualdade estão a ajudar?

Será a muito longo prazo. Se vemos, nas nossas culturas, mulheres a serem batidas diariamente e que continuamos a ser fisicamente mais fracas… será sempre uma luta. Se fizermos as leis certas para as mulheres – e, uma vez mais, temos mesmo de olhar para elas sob um ponto de vista absolutamente prático -, conseguimos. Deem-lhes escolhas, deem-lhes oportunidades, deem-lhes, sabe, números de telefone para elas poderem pedir ajuda.

Um número de telefone?

Um número de telefone pode mudar a vida de uma rapariga de um casamento forçado, de um marido que a agride, de uma que sente que não tem outra alternativa que não a ditada pela família, pelo que é imposto pela sociedade. Onde existam mulheres e raparigas às quais possamos dar alternativas, então mudaremos a sociedade muito mais depressa. As gerações devem olhar para as suas realidades e empreender as suas lutas. Hoje em dia, vejo que as redes sociais e a internet estão a criar uma nova explosão de misoginia, outra vez. Muito do ódio na internet é contra as mulheres, o revenge porn, estes grupos e a maneira como os grupos falam e atacam as mulheres.

“Muito do ódio na internet é contra as mulheres, o revenge porn, estes grupos e a maneira como os grupos falam e atacam as mulheres”

Parece uma contradição. Ao mesmo tempo que estamos mais alerta para os problemas das mulheres, assistimos ou permitimos um crescimento da misoginia?

Estamos atentos à sociedade real, estamos a ir mais à frente, mas a atitude para com as mulheres na internet está a piorar. De alguma forma, e é muito estranho, os efeitos deste mundo virtual é algo que ainda não estamos a descortinar do quanto nos está a mudar.

Aposto que já anda a pensar nisso para um ensaio.

Tenho alguns pensamentos, sim (risos). Acho que isto é tão ou mais perigoso do que os jogos de azar porque são as nossas vidas a toda a hora e influencia-nos horrivelmente muito mais.

A vida das mulheres vai mesmo piorar? Em quê?

Sim. Porque os homens conseguem sempre escapar com os comportamentos na Internet, mas não vão permitir isso às mulheres. Tudo começa na Internet, depois torna-se um hábito e depois chega à vida real.

“É tão aborrecido escrever sobre coisas que acontecem num computador. É tão estranho, tão abstrato, tão seco, tão morto”

É o seu próximo livro?

Não (risos), porque é tão aborrecido escrever sobre coisas que acontecem num computador. É tão estranho, tão abstrato, tão seco, tão morto. E penso: ‘se é tão aborrecido de escrever, é aborrecido de viver’. Precisamos de ir às coisas reais, como aconteceu com o Nada. É preciso cheirar e sentir a vida. Espero que as novas gerações deitem fora o mundo virtual, é a minha esperança. Pessoalmente, não tenho redes sociais, fechei tudo porque precisava de perceber o que estava a acontecer, e que não era saudável. Tudo o que os outros colocam, mesmo sendo da vida quotidiana, influenciam a nossa disposição. Pequenos comentários que nunca seriam ouvidos podem ser vistos em todo o lado. E mesmo artigos que outros colocam, nunca seriam lidos se não fossem postos por outros. Todos, os outros, estão a definir a agenda da nossa própria vida, e os nossos sentimentos são energias. Se se fica com má disposição, isso depois influencia a forma como interagimos com as outras pessoas. As redes sociais não são saudáveis.

Juntando o Nada e o A Guerra, parece, por vezes, que está desencantada com o mundo, sem fé. É assim?

Não, é o contrário. Escrevo o que é desconfortável. Em Nada não há final feliz. E depois de o escrever, fiquei muito mais feliz na minha vida.

 

Porquê?

Porque todos temos um Pierre Anton [protagonista] que pergunta sobre o sentido de tudo o que fazemos ou da vida. Por vezes, ouvimos, outras não queremos ouvir ou fazemos de conta que não estamos a prestar atenção, mas ele está lá. Ninguém pode responder, nem sei se conseguiremos responder. É a nossa condição de vida e todos ficamos deprimidos quando pensamos nisto. Quando escrevi este livro e pus no papel tudo aquilo a que não conseguia responder ou contradizer, fiquei amiga do Pierre Anton.

Portanto, escreve para travar amizades com os seus fantasmas.

Sim. Mudou. Tomei consciência que não sabíamos porque estamos aqui, sabíamos apenas que estávamos aqui. E, para muitos leitores que conheci, funcionou da mesma forma. Passei a respeitar a vida porque foi isso que correu mal no livro. Quando olhamos para o Pierre Anton, sentado na árvore a dizer as coisas que diz, ele vive na perspetiva correta. Mas nós não vivemos na perspetiva certa, vivemos na mais próxima possível: que é agora e na qual tudo é importante.

Trabalhou como consultora em questões humanitárias. Porque mudou de vida e passou a escrever?

Na verdade, sempre escrevi ficção, desde miúda. Sendo oriunda de uma família de imigrantes, ter educação superior era um questão importante para eles. Sendo interessada no mundo, optei por estudar economia, mas escrevi sempre e publiquei a minha primeira história quando tinha 14 anos. Fez tudo parte de um processo. Estudei, trabalhei para pagar as minhas dívidas. Mas, pouco depois de ter pago os meus empréstimos escolares, entrei no meu último trabalho, o processo de paz em Moçambique, e foi aí que poupei os meus salários para depois poder começar a escrever. Fiz algumas consultorias posteriormente para viver, mas basicamente escrevi.

Mas desistir de processos de paz…

Acredito que todos os seres humanos têm uma mistura das suas capacidades e oportunidades. E poder ajudar miúdos a crescer bem, a terem a sua própria sobrevivência assegurada é muito importante, mas achava que tinha de escrever as minhas histórias. Em Moçambique ser confrontada com a possibilidade de ser mais importante escrever histórias da minha imaginação do que conceder ajuda humanitária… bem, nunca justifiquei isso dessa forma. Para mim, mesmo tempo um trabalho que desejava e, acima de tudo, no qual poderia colaborar em processos de paz com o histórico que tenho era importante. No entanto, também sempre senti que outra pessoa podia fazer esse trabalho. Eu tinha de escrever as minhas histórias. É um sentimento estranho.

“sempre senti que outra pessoa podia fazer esse trabalho [mediar processos de paz]. Eu tinha de escrever as minhas histórias. É um sentimento estranho”

Toda a gente pode conduzir processos de paz?

Sim. Pode. Mas eu precisava e tinha de ir para as minhas histórias. No início, não consegui justificar a escolha da saída da ajuda humanitária para a escrita, mas, agora, quando vejo os leitores – crianças e jovens adultos – a explicar o que o Nada lhes tinha provocado e a fazerem-me chorar… Se escrevo histórias que ligam pessoas aos pensamentos, então isso é importante.

Mas, tendo conduzido processos de paz e escrevendo as histórias nas quais mostra uma raça que não é assim tão humana, parece mesmo que saiu desse universo desencantada.

Não, tenho fé na humanidade. Espero, com os meus livros, chegar às pessoas por forma a criar um mundo melhor. Mesmo quando escrevo livros desconfortáveis, espero que as pessoas saiam da sua complacência e que, de seguida, mudem o mundo para melhor.

“Mesmo quando escrevo livros desconfortáveis, espero que as pessoas saiam da sua complacência e que, de seguida, mudem o mundo para melhor”

Tendo em conta a fé na humanidade e a provocação que almeja provocar e tendo em conta que Nada esteve proibido durante anos, o que significa esta proibição para si?

O que me chocou foi que um livro sobre as questões existenciais da vida fosse proibido na Europa moderna. Para mim revelou muito da nossa sociedade, eles não querem que nós pensemos.

Na Europa moderna, ”eles” são quem?

Exatamente, eles. Não são políticos em democracia. O sistema capitalista moderno está assente no esquema segundo o qual nós não pensamos, apenas compramos. Não creio que tenho sido uma pessoa a decidir, até porque o sistema capitalista somos todos nós. Mesmo eu faço parte dele. Mas algumas pessoas que se sentam no sistema, algures, ficaram tão desconfortáveis que quiseram retirá-lo. Não funcionou como censura, na Dinamarca havia escolas que o procuravam. Mas houve quem se sentisse desconfortável com isto e quis parar. Penso que eles próprios se sentiram desconfortáveis com os pensamentos do livro.

“O sistema capitalista moderno está assente no esquema segundo o qual nós não pensamos, apenas compramos”

O que poderemos esperar do seu próximo livro?

Acabei de terminar uma coleção de ensaios e estou a preparar um romance para adultos. Não posso adiantar, mas será desconfortável. São sempre (risos).

Tendo em conta o trabalho que, em tempos, desenvolveu com as Nações Unidas (ONU), como olha para o secretário-geral António Guterres?

Acho que ele é muito bom. Não o conheço pessoalmente, mas a sua história é muito boa e creio que é a escolha certa, mesmo sabendo que havia uma ideia geral de preferência pela mulher candidata, mas ele era muito qualificado. A ONU é difícil, é um sistema bastante burocrático, em que todas as nações estão juntas e temos de compreender que, para o melhor e para o pior, a organização é a soma das vozes de todo o mundo. Portanto, ele pode fazer algumas coisas, mas também tem de ser realista.

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Mas a ONU não está cada vez mais vulnerável?

Sim. E não é culpa dele. É de alguns países que não querem respeitar as Nações Unidas. A América está a desrespeitar a ONU, é muito difícil. Ele tem um grande trabalho pela frente, mas também acho que ele tem a coragem para liderar a organização. Porque, em algum ponto, ele terá de enfrentar os EUA. São tempos difíceis.

“António Guterres pode fazer algumas coisas, mas também tem de ser realista”

Estão a ser os mais difíceis?

Em algumas décadas, sim, mas está ser reconstruído. Houve um desrespeito dos soldados na Bósnia, a procura por fundos que não foram acudidos e chegamos a este ponto onde haverá confronto. Mas ele [Guterres] vai ser a pessoa certa para o lugar porque espero que, a uma determinada altura, ele perceba que vai ter de bater com o pé e lutar o que é preciso. Será uma necessidade. E mesmo com todos os choques, as Nações Unidas são uma necessidade, é preciso existir um sítio onde todas as nações se encontram e falam. Se não existisse, teria de ser inventada. Mas existindo, é uma plataforma fantástica para a melhoria do mundo. É como a União Europeia: podemos criticar muito, mas é uma plataforma muito importante que ajuda a pôr o mundo melhor.

Dinamarca, Moçambique, Tanzânia, Nova Iorque, e agora, entre tantas outras, Berlim. Ainda é uma imigrante?

(risos) Sou uma nómada. É assim que me sinto. Sei que sou fruto de uma mistura de culturas. Tenho amigos em todos os países, em todos os lados, culturas, religiões, cores. Sinto que estou um pouco por todo o lado e é assim que me sinto em casa

Berlim é a sua última paragem?

Não. Será uma das minhas paragens (risos). Veremos. Mantenho também o meu lugar na Dinamarca. Vou andar por aí.

Imagem de destaque: DR

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