Mariana Monteiro: “Há rapazes que me perguntam se faz mal brincarem com as bonecas da irmã”

Mariana Monteiro começou a entrar na casa dos portugueses em 2005, nos ‘Morangos com Açúcar’. Na altura era Bia, uma rapariga de cabelo muito curto e voz rouca, que desafiava os padrões de beleza, e apesar disso, ou talvez por isso mesmo, conquistou o publico. Depois foi Mafalda, Nalini, Maria Della Luce, Andreia, Esperança, Ana, Amélia, e tantas outras. Em breve surge no cinema como Ermelinda.

Uma vida repleta de nomes de outras mulheres com uma carreira televisiva de 12 anos sem pausas. Pelo menos até ao dia 31 de maio de 2017, quando a atriz decidiu parar, e dedicar-se a uma figura bem real: Mariana Monteiro. Uma paragem para concretizar vários sonhos que foi adiando e que agora está a pôr de pé. Um deles é o teatro, projeto de que ainda não pode falar muito, mas certo é que a vamos ver em palco brevemente. A par desta vida feita da representação, Mariana dedicou-se também à promoção da Igualdade de Género, sendo o rosto de várias campanhas alusivas ao tema e tendo lançado os livros ‘Mariana num Mundo Igual’ e ‘Mariana no Caminho da Igualdade’, dedicados às crianças entre os seis e os nove anos. Faz ainda várias palestras sobre o tema pelas escolas do país, a fim de explicar aos mais novos o que é o feminismo.

Falámos com a atriz de 30 anos sobre este tema, mas também sobre o #metoo, a acusação de violação que paira sobre Ronaldo, a imagem sexualizada das mulheres na televisão e a necessidade de se questionar a sociedade em que vivemos.

Há alguns dias partilhaste uma storie em que dizias: “Seguimos um padrão sem questionar. Será que é a nossa vontade que canta mais alto?”. Porquê esta frase em particular?

Isso vem de uma ideia recente que consiste em dar voz a alguns textos que eu escrevo. São pensamentos, formas de filosofar sobre a vida e algumas circunstâncias. Mais do que eu estar dissecar cada um desses pensamentos a ideia é que cada um se reveja, ou não, naquilo que eu digo. Nesse, em particular, se calhar é mais claro o que quero dizer.

Que é o quê, concretamente?

Falo do ritmo em que vivemos, e de uma sociedade que muitas vezes segue o rebanho. Esta vontade que eu tenho de questionar tudo, e não aceitar aquilo que me dizem como uma verdade absoluta. Desde leis, a religião… Fala de uma forma muito abrangente sobre o que é seguir um padrão e viver em sociedade. Começarmo-nos a questionar, por exemplo, sobre a igualdade de género. É quando se começa a saber mais sobre o tema que descobrimos uma serie de estigmas que nos vão sendo incutidos desde cedo. Como o facto de os brinquedos serem estereotipados para rapaz ou rapariga e isso ao longo da vida ter um reflexo.

Porque é que achas que esses padrões se perpetuam?

Acho que falta questionamento, muitas vezes até pensamos sobre o que nos é dado de uma forma já formatada; o que nos falta é questionar isso. E às vezes não é fácil, porque é algo que está muito automatizado, e pormo-nos na posição de perguntar se as coisas são mesmo assim, não é muito fácil.

Automaticamente nós temos tendência para responder de uma certa forma, a tendência muitas vezes é o peso das tarefas recair sobre a mulher, como a tendência de pagar contas para o homem. É uma coisa cultural.

O que é que se pode fazer para combater essa dificuldade?

Muitas vezes as pessoas só se questionam perante uma situação que lhes acontece. Por exemplo, a mim a vida colocou-me a pensar mais sobre os temas da desigualdade de género. A partir do momento em que em 2015 comecei a trabalhar sobre isto, claro que me questionei mais. Não foi por auto-recriação.

Antes de receberes o convite das Nações Unidas para seres porta-voz da juventude no tema da Igualdade de género, em 2015, já tinhas feito alguns trabalhos na área. Quando e como é que despertaste para o feminismo?

Tenho uma grande vantagem que é o facto de o meu pai ser sociólogo e ter trabalhado muitos anos na Comissão para o Direito e Igualdade da Mulheres, que hoje em dia é a CIG. Como o meu pai teve esse trabalho a travar lutas pelos direitos das mulheres, é claro que estes temas se falavam em minha casa e eram debatidos à mesa.

Tiveste uma educação diferente por o teu pai ter essa função?

O meu pai diferenciava-se dentro da geração dele. Em casa sempre cozinhou, a divisão de tarefas existia, e isso para a geração dele não era tão comum. Em minha casa eu nunca vi aquela situação de ser a minha mãe a cozinhar, por exemplo. E isso foi muito positivo, porque são estas coisas que nos ficam muitas das vezes na memória. Claro que estas atitudes despertaram mais a minha consciência para estes temas.

Essa educação levou a que tu durante a adolescência fosses mais consciente dos limites, menos tolerante a situações de controlo e ciúmes, do que as tuas amigas que tiveram educações mais conservadoras?

O facto de estarmos alerta e conscientes não quer dizer que se faça tudo certo. Por isso é que este trabalho não acaba nunca, a mudança de hábitos e consciências é muito demorada. Automaticamente temos tendência para responder de uma certa forma; a tendência muitas vezes é o peso das tarefas recair sobre a mulher, como a tendência de pagar contas para o homem. É uma coisa cultural. O que eu tento sempre é aperceber-me se isso está a acontecer comigo ou quem está perto de mim, e nessa altura fazer um alerta. Muitas vezes até somos nós próprias que propagamos um mau hábito, é preciso abrir muito os olhos mesmo.

A mentalidade das mulheres também está muito formatada para esta cultura de desigualdade?

Hoje em dia está muito melhor, mas claro que ainda está formatada se não isto já não existia. Muitas vezes as próprias mães perpetuam muitos destes vícios e hábitos menos bons.

Muitas vezes ouve-se que já não faz sentido ser feminista em Portugal, porque no nosso país as desigualdades entre homens e mulheres são cada fez mais ténues. Achas que as desigualdades prevalecem ou é algo que já está praticamente colmatado?

O problema está no facto da palavra feminismo ter ganho uma conotação negativa, porque há muitos movimentos e alguns acabam por fazer a imagem do feminismo ficar mais turva. Feminismo não é a supremacia do feminino, feminismo é a luta por igualdade social, política e económica entre mulheres e homens. Além disso engloba a igualdade de direitos raciais e orientação sexual. O movimento feminista procura realmente uma igualdade social, o problema é que existiram muitos movimentos radicais, como em tudo, que levaram a que se confundisse o movimento. O feminismo não luta contra as questões biológicas, por exemplo, simplesmente não se pode legitimar tudo, porque de repente biologicamente somos isto ou aquilo. Se o Feminismo for bem entendido, ninguém tem medo ou vergonha de dizer que é feminista. Eu sou feminista reconheço-me como tal e no nosso país existe a necessidade de alcançar uma igualdade que ainda não está conquistada, desenganem-se.

Não sou a favor nem de quem já colocou o Cristiano no lugar da sentença, nem das pessoas que saem em defesa absoluta dele, porque se realmente isto aconteceu não cabe aqui defesa, independente de ser ele quem é.

Que diferenças biológicas são essas?

Força física, por exemplo. Está provado que no atletismo um recordista masculino nunca fará um tempo igual a uma recordista feminina. Há diferenças e elas têm de ser respeitadas e não é contra elas que se luta. Mas por exemplo essas diferenças não podem justificar situações como assédio sexual, por exemplo.

Em relação ao assédio sexual, temos de falar sobre o movimento #metoo que trouxe muitos casos ao de cima. Já falaste ao Delas.pt sobre o tema, disseste na altura que “a denúncia teria de ser mais forte que o medo”. O que aconteceu com o #metoo é que muitas denúncias foram feitas anos depois e isso tem sido alvo de muitas críticas e denegrido a imagem do próprio movimento. Qual é a tua posição em relação a isto?

Eu sou sempre a favor de movimentos que dão coragem e voz a grupos que estão numa situação frágil. Também existe assédio por parte de mulheres, mas sabemos que o número da parte dos homens é superior. Existia um medo muito grande porque muitas vezes as situações aconteciam em ambientes de trabalho, em que as pessoas sentiam que podiam ser prejudicadas se fizessem uma denúncia. A partir do momento em que surge um movimento cuja ideia é dar voz e empoderar essas pessoas, eu não posso ser contra. Agora, como em tudo, cada caso é um caso, e todos eles têm de ser analisados devidamente. Falando de uma forma global, o que posso dizer é que a credibilidade de cada um não pode ser perdida por um prazo de validade, porque isto não é um iogurte que saiu do prazo, é um acontecimento que por alguma razão ficou na gaveta, e se essa razão for o medo de represálias, faz todo o sentido e aí tem de ser analisado e compreendido o motivo para que a acusação não tenha sido feita.

No âmbito do #metoo, o Cristiano Ronaldo é acusado de violação. A sociedade portuguesa dividiu-se muito de imediato, entre a defesa de um símbolo nacional, e o apontar do dedo. Como é que vês este caso em particular?

É complicado fazer uma formulação muito consistente sobre o assunto porque o caso está em aberto. A única coisa que posso dizer é que não estarei de nenhum lado enquanto as investigações não tiverem um resultado. Não sou a favor nem de quem já colocou o Cristiano no lugar da sentença, nem das pessoas que saem em defesa absoluta dele, porque se realmente isto aconteceu não cabe aqui defesa, independente de ser ele quem é. Tem de haver uma imparcialidade neste tipo de julgamentos, e como em tudo eu sou isenta até que os termos legais comprovem o que aconteceu.

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Tu tens feito um trabalho para a Igualdade de Género que não passa apenas pelos dois livros que lançaste mas também por ires às escolas falar sobre este tema. O teu foco são as crianças entre os seis e os nove anos. Como é que se fala sobre feminismo com crianças tão pequenas?

Por incrível que pareça é muito fácil, porque ainda não estão formatadas pela sociedade e por isso absorvem tudo como uma esponja. Além disso são muito sinceros e genuínos e no final dizem aquilo que realmente pensam. Fazem-me imensas perguntas.

Qual é o tipo de perguntas que te fazem?

Os rapazes perguntam-me se tem mal verem uns desenhos que achavam que eram mais de rapariga, ou se faz mal brincarem com a boneca da irmã. Uma rapariga já me chegou a dizer que o pai não quer que ela jogue futebol, e isto são coisas que acontecem hoje. Aquela questão de ‘porque é que ainda é preciso no nosso país?’ Aqui está um exemplo. Eu vou às escolas, trabalho com uma geração que no primeiro ciclo já sofre de limitações nas suas escolhas por causa de questões de desigualdade de género.

Nessas idades as limitações prendem-se mais com que áreas?

Com os brinquedos e atividades desportivas, e isso são coisas que vão implicar com a escolha de uma profissão. Eu posso querer ser jogadora de futebol profissional, e se não me deixarem jogar com 6/7 anos posso estar a perder anos importantíssimos de treino, como se quiser ser bailarino.

Lançaste o primeiro livro em 2015, já se passaram três anos. Notas alguma evolução?

Felizmente noto. Já existem muitas escolas onde o que eu digo já é óbvio. As escolas já debatem bastante a igualdade de género. Muitos rapazes já me dizem que podem vestir cor de rosa e isso é muito interessante.

O que é que mudou?

Noto que há um investimento de muitas câmaras. Há muitos municípios que têm departamentos para a igualdade de género e isso faz muita diferença, porque acontecem uma série de iniciativas com objetivo de mobilizar a população para aquele tema. E isso faz muita diferença.

A meu ver a objetificação só acontece quando não é de livre vontade e é descontextualizada.

Desde junho de 2017 que fizeste uma pausa na representação. Porque é que decidiste parar?

Eu comecei em 2005, e até 2017 nunca tinha feito uma pausa televisiva. Foram 12 anos consecutivos a gravar, sem grandes intervalos de tempo. Como em qualquer profissão também é importante ter um momento de reflexão e foi o que aconteceu. Senti a necessidade de parar, não de trabalhar, mas de fazer televisão durante um tempo. Senti que era importante fazer esta rutura, até para eu me reciclar e trazer algo de novo quando voltar.

Já tens data para voltar?

Não tenho data ainda. Tal como o timing para parar surgiu de forma muito natural, o meu regresso também será da mesma maneira. Vou sentir quando for a altura de regressar à televisão, porque, como disse, não parei.

Estás a fazer teatro?

Estou a preparar um projeto de teatro, mas não posso dizer mais.

O que é que o teatro te traz de diferente da televisão?

Vou descobrir ainda. Uma das razões para parar foi para poder dedicar-me a projetos que andava a adiar: uma grande viagem, uma experiência de voluntariado, cinema e teatro. Já fiz uma curta-metragem este ano que está quase a sair e é num registo muito diferente. É uma comédia surrealista e é de uma realizadora, a Vera Casaca.

Faz diferença ser uma mulher a realizar?

É sempre diferente. Assim como na escrita, eu sou sempre a favor que exista uma mulher e um homem porque temos sempre as tais questões biológicas que nos fazem imprimir a realidade de maneira diferente.

A tua primeira personagem foi a Bia dos ‘Morangos com Açúcar’, a imagem dela era diferente do padrão de beleza comum. Tinhas noção do impacto que isso poderia ter nas miúdas que viam a novela?

Não. Eu cheguei lá com o cabelo muito comprido, e quando me disseram qual era a imagem da Bia, parei e pensei se era mesmo aquilo que queria. Depois percebi que se não tivesse aquela imagem provavelmente eu não teria marcado tanto a geração que viu. Os padrões custam a quebrar, mas depois são essas quebras que acabam por se consolidar mais.

Achas que é preciso quebrar mais padrões na forma como as mulheres são representadas na televisão portuguesa?

É preciso quebrar mais padrões de uma forma geral, aí não falo só pelo prisma feminino. Há muita coisa que não é fácil de quebrar, acho que é preciso quebrar preconceitos.

Muitas vezes nas novelas as mulheres são retratadas de forma muito sexualizada e existem muitas cenas onde o corpo é exposto…

Hoje em dia também já existe muito mais exposição do corpo dos homens, isso é uma coisa que noto, por exemplo.

E também notas que hoje existe uma maior diversidade na forma como as mulheres são representadas?

Sim, também noto isso. Acho que em representação, seja em que formato for, o nu tem de fazer sentido e servir à história.

Alguma vez sentiste que eras avaliada mais pelo teu corpo para conseguir um trabalho do que propriamente pela tua capacidade enquanto atriz?

Nunca me aconteceu diretamente nada. Nós somos livres nas decisões que tomamos, eu nunca tomei nenhuma decisão que fosse contra o que acredito. Já fiz fotografias para uma revista masculina quando tinha 18 anos, mas a decisão foi minha. Uma coisa é eu fazer este tipo de fotografias obrigada e eu não querer, outra é eu tomar a decisão de o fazer. Quando uma pessoa se dispõe a determinada situação não o vejo como objetificação. O objetificar é quando alguém se deixa de preocupar com o conteúdo e me expõe de forma inapropriada. A meu ver a objetificação só acontece quando não é de livre vontade e é descontextualizada.

Imagens : Ricardo Santos/ Elite Lisbon

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