O jogo da (minha) cadeira (de rodas)

 

As semanas anteriores a ter que voar são quase sempre de algum desconforto. A verdade é que não gosto de sair do chão nem de saber que a minha cadeira vai longe de mim e que algo lhe pode acontecer. Ou de sentir que se precisar de ir à casa de banho a meio da viagem, vai ser um circo. Por isso, durante os dias que antecedem uma viagem de avião, ando ansiosa e a pedir lá “pra” cima que a hora do regresso chegue rápido.

Chego ao aeroporto com a minha mãe duas horas antes do voo.

Balcões de check-in vazios, ótimo, posso escolher. Opto pelo que tem a colaboradora mais velha, acreditando que me vai ajudar o facto de ser experiente. Entrego o bilhete eletrónico e explico que quero ir na minha cadeira até ao avião, que foi isso que combinei quando comprei o bilhete.

A senhora levanta-se, empoleira-se na caixa do check-in, olha atentamente para a minha cadeira, abana as mãos e a cabeça ao mesmo tempo e pergunta “consegue andar ou…” Respiro fundo – percebo que tenha que fazer a pergunta, mas encanita-me da mesma forma – respondo “paraplégica”. E sorrio.

Volta para o balcão, fala com a colega do lado e diz-me “sabe, se calhar que é melhor passar para uma das nossas cadeiras e despachar já a sua, é mais seguro. Assim garantimos que fica tudo tratado e a cadeira vai bem-acondicionada no porão do avião.”

Olho para a minha companheira de vida e penso “não posso correr o risco que venhas amolgada ou sem uma peça…”, enquanto a senhora continua “é que quando chega à porta do avião passa para as mãos de outra entidade e aí já não nos podemos responsabilizar…”

Aquilo deixa-me inquieta, volto a olhar para a cadeira e imagino-a maltratada. “Isso é que não…”, penso, e decido confiar, aceitando que me tragam uma do aeroporto, juntamente com alguém da equipa de terra preparado para me acompanhar.

Uns minutos depois, aproxima-se uma miúda nova, com um ar simpático. Quase maternal, parece-me e isso deixa-me desconfiada. Com ela vem uma cadeira verde metalizada (confesso que gostei da cor), bastante usada. De sorriso na boca, a razão do meu alerta interior estava prestes a revelar-se. “Ora um bom dia! Bem-vinda! Vamos então passar para a cadeirinha devagarinho? E prefere uma ajudinha, ou consegue sozinha?”. Tanto “inho”, devo dizer, faz-me cerrar os dentes. Sorrio, outra vez, peço que a coloque ao lado da minha, que a trave, e transfiro-me para lá.

Quando dou conta tenho quatro seguranças a olharem para a minha cadeira, a tentarem perceber qual será a melhor forma de a “despacharem” para o porão. Falam essencialmente com e para a minha mãe, como se eu tivesse uma qualquer incapacidade para lhes explicar o que fazer com a MINHA cadeira. Aproximo-me e digo “não, esta cadeira não encarta. Desmontamos apenas os braços e os protetores de roupa, as únicas peça que podem saltar, caso lhe peguem mal.”. Optam então por retirar as quatro peças, juntá-las, envolvê-las numa tira autocolante e transportá-las em cima do acento da cadeira. Benzo-me enquanto a vejo a afastar-se.

E lá estou eu, sentada na cadeira do aeroporto, pesada, a sentir-me uma elefante de perna aberta porque os pedais são demasiado distantes um do outro, com o pé a saltar de um deles porque lhe falta uma peça, e com a sensação de estar rente ao chão, porque estou habituada a uma almofada alta. “Minha rica cadeira, feita à minha medida…” penso, mas tento abstrair-me com um “isto é, por pouco tempo, não tarda e embarco.”

Atravesso o aeroporto empurrada pela menina, com uma mão, porque na outra leva a minha bagagem. Chegamos à sala de embarque e diz-me “pronto, agora fica aqui descansadinha que quando chegar a hora de embarcar vem o meu colega e leva-a até ao aviãozinho, ok?”. Mantenho os dentes cerrados e o “sorriso 33” e agradeço.

Faltam vinte minutos entrar no avião. Altura em que se ouve no altifalante “senhores passageiros do voo nº xxx para Porto Santo, informamos que estamos com um atraso de trinta minutos, pelo que pedimos desculpa.” Olho para a minha mãe, encolhemos os ombros, nada a fazer senão esperar.

Aproveito para ir à casa de banho. A mais próxima e preparada para mim é a cerca de quarenta metros. Quarenta metros que me parecem quarenta quilómetros quando os tenho que fazer sentada numa cadeira feita para ser empurrada e não para ser conduzida por quem é, como eu, ativa.

Entro na casa de banho, não tem trinco e está suja. Passo a respirar apenas pela boca, tento não olhar para o chão e penso, “vá lá que não são as rodas da minha cadeira que estão a pisar isto… menos mal”. Eu e a minha necessidade de ver o lado positivo das coisas, que, felizmente, também não me abandona ali.

De novo os “quarenta -metros-que-mais-parecem-quarenta quilómetros” até onde deixei a minha mãe e arrumo-me perto o vidro que dá para a pista, para ver os aviões a descolar.

Hora de embarque, chega o colega, sem “inhos”, felizmente, vamos a isso. Já na porta do avião passam-me para uma cadeira especial, “feita para gente com cinquenta quilos, no máximo”, ainda penso, mas, enfim, tem a medida exata do corredor que atravessa o avião entre bancos, e contra factos não há argumentos. Sou levada até ao meu lugar, transfiro-me para o meu banco, sigo viagem.

Hospedeiras fantásticas, sempre atentas, sem precisarem de estar sempre com os olhos em cima de mim. Tal como sou a primeira passageira a desembarcar, sou a última a desembarcar, por questões de segurança. Compreensível. Enquanto esperamos que tragam a minha cadeira do porão, perguntam-se se vou de férias. Explico que vou de fim de semana para dar uma palestra sobre a minha história. Noto um olhar de ternura numa delas, que venho a descobrir que vive perto de mim quando me diz “logo vi que a conhecia de algum lado, somos vizinhas!”. E confirma-se, mais uma vez, o mundo é um berlinde.

Despedimo-nos. “Boa palestra, tenho a certeza de que vai motivar muita gente…”. “Obrigada por tudo e boa viagem de volta Lisboa!”, respondo com um abraço.

Dois dias depois, no regresso, entro de novo no avião, mas, desta vez, decido eu e não abro mão de ficar na minha cadeira até ao embarque. O rapaz destacado para me deixar na porta de embarque só precisa de levar a minha bagagem. Resultado: enquanto espero que chegue a hora, passeio-me sozinha pelo aeroporto, faço compras no free shop, bebo café numa das esplanadas, circulo à vontade e sem esforço. Apesar de saber que vou voltar a voar, estou muito mais descontraída. E consigo usufruir do que me rodeia.

O regresso foi uma boa experiência e fez-me querer voltar. Daí que se a ideia é proporcionar experiências agradáveis a clientes como eu, a solução é simples: não decidam por nós. Perguntem-nos como. Melhor do que ninguém, nós saberemos explicar-vos o que as poderá tornar únicas. E o que nos fará voltar.