Valente Valentina: o livro que quer inspirar mais mulheres a ir ao espaço

No mês em que se comemoram os 50 anos da chegada do Homem à Lua, com filmes sobre Neil Armstrong no cinema e menções aos seus companheiros da Apollo 11 (Buzz Aldrin e Michael Collins), Andreia Nunes quis juntar um nome feminino à lista dos que marcaram esta odisseia no espaço. Aos 34 anos, a Técnica Superior de Educação, natural de Santa Comba Dão, decidiu homenagear Valentina Tereshkova, a primeira mulher astronauta cujo nome passa despercebido a muitos.

Valente Valentina/Mighty Valentina é a estreia de Andreia Nunes na literatura infantil como “escritora wannabe”, como se assume divertidamente a também atriz e cantora, que não esconde a sua curiosidade por “mundos que parecem vedados às mulheres”. Ao Delas.pt fala sobre o seu percurso, a descoberta de Valentina Tereshkova, a ausência de um role-model feminino nas áreas espaciais e a construção deste livro infantil bilíngue, assim concebido “para poder chegar a várias crianças de vários países”.

O que a motivou a escrever este livro?
Em 2015, eu estava apenas dedicada à música, e decidi apostar em algo que sempre me tinha fascinado: o universo dos livros infantis. Sempre tive um grande sentido crítico em relação ao “aprincesamento” das personagens femininas e a todo o universo Disney. Achava super injusto que as grandes peripécias ficassem sempre reservadas aos personagens masculinos, enquanto que as femininas ficavam confinadas a serem “belas, recatas e do lar.” Felizmente cada vez mais surgem livros excelentes e que desafiam as convenções e os estereótipos de género. Mas muito ainda há para fazer, por isso decidi nessa altura frequentar um curso de escrita para livro infantil.

Foi nessa altura que descobriu quem era Valentina Tereshkova, a primeira mulher astronauta?
Sim, eu procurava uma personagem feminina, forte e corajosa. Comecei por pesquisar grandes mulheres e a tentar saber mais sobre as suas conquistas. Foi aí que me deparei com a história da Valentina Tereshkova. Fiquei muito surpresa porque, sendo feminista e educando para a Igualdade de Género, eu própria não sabia quem era esta mulher e que tinha sido a primeira astronauta. Comecei a pesquisar sobre a sua história e as peripécias da sua ida ao espaço, que eram muito cómicas e que me pareciam apelativas para o público infantil.

Fale-me sobre as sessões de igualdade de género que conduzia nas escolas.
Desde 2009 que colaboro com várias ONGs como Técnica Superior de Educação, atuando em escolas, promovendo a igualdade de género e prevenindo a violência de género entre crianças, jovens, professores/as e outros públicos estratégicos. Este contacto privilegiado desde há muitos anos com crianças e jovens e o desejo de incutir um olhar crítico sobre os materiais lúdicos, pedagógicos e artísticos das histórias infantis, dos filmes para crianças, dos brinquedos e jogos tem sido sem dúvida embrionário para desenvolver imensos projetos para promover a igualdade de género. E, claro, deu-me a coragem necessária para me aventurar nesta missão de escrever a Valente Valentina.

Tal como a Valentina do livro, tinha uma grande curiosidade sobre os “assuntos do espaço”?
Tal como a Valentina tenho uma grande curiosidade sobre mundos que parecem vedados às mulheres e que nós vamos furando, mostrando o nosso valor e superando os nossos objetivos. O céu não foi o limite dela e não será o nosso. Estes dias vemos imensas comemorações sobre os 50 do Homem na Lua e que se comemora no dia 20 de julho. Mas não me recordo de ver grande divulgação no dia 16 de junho de 2019 que que neste dia em 1963 a primeira astronauta (cosmonauta) subiu ao Espaço.

Na sua opinião, porque é que certas profissões como a astrofísica e certas engenharias parecem ainda estar associadas ao sexo masculino?
Sabemos que a segregação das profissões é uma realidade. Apesar dos avanços notáveis na presença feminina nas diversas áreas académicas e profissionais a balança está longe de estar equilibrada. As mulheres continuam sub-representadas nas áreas CTEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática). No caso de Portugal, o nosso país foi destacado pela OCDE pela positiva devido à forte presença feminina nestas áreas CTEM, mas dentro das diferentes engenharias existem algumas com um grande défice de presença feminina, como é o caso da Engenharia Aeroespacial. Quando se fala em posições de chefia no mundo da ciência, em cargos de liderança nas instituições de investigação e de ensino superior, a diferença de género acentua-se e muito. Desde Marie Curie, em 1903, apenas 17 mulheres foram galardoadas com o prémio Nobel da Física, por comparação a 572 homens.

O que está a falhar?
Existe uma ausência de role-models feminino. Se tivermos em conta que 571 pessoas foram ao Espaço e que apenas 63 foram mulheres percebemos porque é que a partir do momento em que dizemos “astronauta” imaginamos um Homem e não uma Mulher. As equipas espaciais norte-americanas só enviariam a primeira astronauta norte-americana, Sally Ride, 30 anos depois da Valentina. Ainda nenhuma mulher foi a lua. O Espaço é o futuro e existem várias carreiras profissionais possíveis desde astrobióloga, engenheira de várias áreas, a meteorologista, nutricionista e tantas, tantas, outras. Esta realidade tem de ser atrativa para as nossas meninas e raparigas.

E esse trabalho começa onde, na educação?
Sim, nós não podemos mais aceitar o discurso de que as crianças escolhem as áreas que gostam para estudar e que hoje já não existe qualquer condicionamento relacionado com o género. Isso não é real. Esta diferença começa desde cedo com a educação desigual de meninos e meninas, com os discursos enviesados da família, dos media, da escola de que meninos e meninas são competentes em áreas diferentes, com a antecipação por parte das meninas da dificuldade em conciliar uma carreira com a vida familiar e o desejo de serem mães, com a falta de confiança de vingar numa área fortemente masculinizada, com as oportunidades de trabalho e condições laborais que privilegiam empregar homens e defender a teoria da meritocracia. Precisamos de continuar a quebrar barreiras.

Porquê uma história de ficção inspirada em Valentina e não uma biografia?
Eu tinha a ambição de escrever uma história inspirada numa grande mulher e não uma biografia adaptada ao público infantil, nem tão pouco infantilizada como por vezes lemos por aí. As crianças são um público exigente. Não querem histórias moralistas. Querem envolver-se na trama, ser surpreendidas com momentos de tensão e conflito. Eu quis honrar possibilidade de se relacionarem com a Valentina, uma menina destemida, que gosta de brincar metida no armário da lavandaria, no escuro, que gosta de imaginar e que é extremamente cúmplice da sua Avó, que alinha nas suas brincadeiras. Mas a história tem imensos detalhes que de facto aconteceram com a verdadeira Valentina. E como eu queria que as pessoas soubessem da sua história real, incluímos uma biografia escrita pela minha amiga e talentosa Vera Gomes, Analista Política na área de Espaço, Membro do Comité de História da Academia Internacional de Astronáutica.

Como se desenvolveu a sua parceria com o Instituto de Astronomia e Astrofísica?
Eu sou a maior fã de parcerias. Acho que só temos a crescer quando fazemos coisas em conjunto, quando pedimos ajuda. Não queria cometer gafes científicas. E isso é mesmo fácil de acontecer, sobretudo quando se escreve sobre a vida no Espaço e não tendo formação na área. Desde o início fui procurando parceiros para caminharem comigo nesta aventura. Comecei com a Vera Gomes, que escreveu a primeira biografia em português que eu encontrei sobre a Valentina Tereshkova e que foi a minha conselheira “espacial” e depois fui procurando outras instituições que me pudessem ajudar com algumas dúvidas. Fui muitíssimo bem recebida pelo Instituto de Astronomia e Astrofísica, que realizou a revisão científica do livro, e louvou muito a ideia do livro. Acabei por aprender imensas coisas e assim poder escrever corretamente sobre o que se passa no Espaço. Aprendi que não deve dizer gravidade zero, mas sim micro-gravidade e também foi importante para incluirmos por exemplo constelações que sejam visíveis por crianças quer no hemisfério norte, quer no do sul.

Como foi desenvolver as ilustrações com Rachel Caiano? Era assim que imaginava a Valentina?
Eu tinha ideia de que a Valentina desta história deveria ter traços da Valentina real, o cabelo ruivo e encaracolado e algumas sardas. E também não devia ser demasiado perfeita. Quis que tivesse um nariz um pouco maior e arrebitado. Também para brincar com o facto de que a Valentina Tereshkova magoou o nariz na descida e eu quis que ele ganhasse aqui na história lugar de destaque pela positiva. Esta sua característica de não perfeição, é um dos seus trunfos. Contactei a Rachel Caiano e escrevi no assunto “Mais Mulheres na Terra por Mais Mulheres no Espaço”. A Rachel respondeu “Mais Mulheres em todo o lado”. Fiquei rendida desde logo. Ela conseguiu ir além de tudo aquilo que eu tinha imaginado para a Valentina. Deu-lhe vida mesmo!

Porque é o nome da primeira mulher astronauta nunca teve o destaque merecido?
Os feitos das mulheres têm sido apagados da história. Não é por acaso que temos dificuldade em nomear mulheres cientistas além de Marie Curie. A representação da ciência é associada à figura masculina, como bem disse Lígia Amâncio (Professora Catedrática do ISCTE, autora e investigadora) numa entrevista. Se as nossas crianças estiverem sempre a ouvir “o astronauta”, “o homem na lua”, como queremos que as meninas possam facilmente aspirar a esses feitos? Não sei se teve também a ver com o facto de ser russa e não ser tão popular quanto seria uma heroína norte-americana. Mas a Valentina é muito querida no seu país de origem e continua ativa e a inspirar meninas e raparigas a grandes voos e aspirações. Vi neste livro uma possibilidade lúdica, pedagógica e artística de difundir o nome desta heroína esquecida por tantas pessoas e que merece ser celebrada.