O meu marido morreu em dezembro de 2016. Morreu, não partiu, como agora se costuma dizer para embolar os cornos ao mais definitivo dos verbos. Tinha 51 anos e eu 49 e ninguém nos avisara. Nada, ninguém, nenhum sinal e ainda bem. Porque, assim desprevenidos, pudemos, dois ou três dias antes desse desfecho, ir ao cinema, jantar fora, fazer amor, com a alegria dos amantes e não com o horror dos condenados.
Passaram-se seis meses. Avessa por natureza pessoal ao espetáculo da dor, prossegui. Comovi-me com o apoio de muitos, enojei-me com a mesquinhez de alguns: O costume nestas coisas, nada de muito importante. Mais decisivo foi habituar-me à casa vazia da sua presença, à ausência da sua mão no cinema, mas também dos seus múltiplos telefonemas ao longo do dia, do toque da pele que os meus dedos ainda agora seriam capazes de cartografar, sinal por sinal, quase poro a poro.
Por alguma razão absurda, associava a viuvez às minhas avós, que o ficaram já velhas, e que, de acordo com o código de costumes do Portugal dos anos 70, de negro se cobriram até ao final das suas próprias vidas, 20 anos depois da morte dos maridos. De negro no verão como no inverno, na casa como na rua, o coração para sempre encerrado a qualquer aspiração.
Não me rendi à tragédia. Saí para trabalhar, arranjei-me como sempre, reencontrei os amigos que a exclusividade da paixão fora secundarizando devagarinho, voltei a ir ao cinema, a viajar, mais raramente a cantar no duche, e, por vezes, a rir com vontade, quase sempre das minhas próprias figuras, agora que tenho de reaprender a viver sozinha. Porque – encaremos a realidade – estar a solo, na sua própria casa, aos 30 anos é empolgante, à beira dos 50, depois de perder um grande amor, é deprimente. Mas necessário. Em seis meses, converti-me numa espécie de Miss McGyver, capaz de enfrentar, sem brilho mas com eficácia, mudança de lâmpadas, abertura de frascos e garrafas de vinho, e micro reparações que requeiram mais engenho do que força. Mais complicado foi domesticar os fechos nas costas tão frequentes nos vestidos de verão. A prova foi superada, embora invariavelmente venha acompanhada por uma investida de saudade.
Esta não é, todavia, a crónica de uma coragem a toda a prova. Esvaziei os armários, é verdade que sim, dei muita da sua roupa a quem dela necessitasse, uso muitas das suas camisas porque gosto delas e porque, de algum modo, ainda sinto o seu abraço naquele pedaço de tecido, mas não passei na mais derradeira das provas: não, não consegui voltar a deitar-me na que foi a nossa cama. Tentei e desisti rapidamente. Compreendi que, em nenhum outro lugar, me era tão insuportável a sua ausência como naquele em que, durante os quase seis anos em que estivemos juntos, tínhamos todas as conversas, as do verbo e as da carne. Permanecer ali seria amortalhar-me, em vida, a algo que não voltará a acontecer. Como se esta simples cama tivesse, afinal, passado da sua básica condição de móvel a relíquia deixada para trás por uma civilização perdida. Fugi? Provavelmente. Fugi do amor parado que se transforma em adiposos quistos de amargura e raiva. Prefiro sentir o amor de e pelo meu marido como um trilho de estrelas que me ilumina a vida e a pele. Um dia, provavelmente, passá-lo-ei a outra pessoa. E, depois de mim, também essa pessoa o há-de passar a outra. E, assim sucessivamente, por séculos e séculos. Como na canção do Chico Buarque, “Futuros Amantes”, um dia, quiçá, alguém se amará sem saber com o amor que deixaste para mim.