A semana começou sacudida com ataques às mulheres e ao corpo, usando a desculpa dos ‘públicos’ para passar ideias que os números não explicam sobre as formas de apresentadoras de TV. A semana também começou com um apoio massivo às visadas, Maria Botelho Moniz e Cristina Ferreira. e contra quem as agrediu, o jornalista Alexandre Pais.
Mais de dois anos depois do caso do batom vermelho – que levou a sociedade portuguesa a apoiar a então candidata presidencial do BE Marisa Matias contra comentário do então oponente na corrida a Belém e líder do Chega André Ventura -, as mulheres voltam a dar as mãos para combater preconceitos e ideias feitas.
No caso mais recente de Maria e Cristina, a polémica conta com uma queixa interposta no Regulador dos Media e a uma condenação por parte da Comissão Para a Igualdade e Cidadania. Recorde-se que, para lá de anónimas e famosas, Catarina Furtado e Sónia Araújo, citadas e elogiadas na mesma crónica e por comparação, rejeitaram as palavras, recusaram e devolveram elogios como de faz a um prémio que não se quer e apoiaram as homólogas.
Mas, afinal, o que representa esta onda de apoio e solidariedade? Ela vem para ficar ou não? “Talvez seja a primeira vez em Portugal que vemos esta união. Foram várias as mulheres visadas e parece-me muito importante que haja este reconhecimento de que este é um problema muito mais transversal do que aquele que atinge a pessoa a, b ou c”, afirma Maria João Cunha.
A socióloga com trabalho científico na área do corpo e da sua representação na sociedade acredita que tal só é possível porque “as redes sociais fazem crescer mais este tipo de manifestação, tornam-na mais visível, é sempre importante a contracorrente e desafiar este tipo de afirmações”.
Lamentando que “o estrago esteja feito”, a investigadora e especialista não duvida que se trata de “um exemplo acabado e lamentável de body shaming” que deve ser combatido com “este contraditório, mostrando que nem todas as pessoas pensam da mesma forma”.
Olhando para trás, Maria João Cunha relembra casos em que identificou de ataque às mulheres como o “do vestido das peras-rocha da Assunção Cristas [em agosto de 2015 então líder do CDS-PP e ministra da Agricultura e do Mar] ou do batom vermelho”. “Temos aqui uma série de casos que indicam como continuamos a avaliar as mulheres que estão na praça pública que são profissionais e que são avaliadas por outra coisa que não a sua capacidade profissional”, indica a socióloga.
A professora associada do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa considera, aliás, que a resposta do sociedade à “robustez” de Maria Botelho Moniz e aos braços “flácidos” de Cristina Ferreira foi ainda mais inequívoca do que das outras vezes. “Em Portugal, antes, verificávamos ataques mais isolados. Desta vez, foram envolvidos nomes de várias pessoas e figuras públicas femininas e aqui é que me parece estar a grande diferença: a indignação e o apoio manifestou-se ao nível dos públicos, mas também junto dos colegas”. “Parece-me um passo importante terem havido outras profissionais que recusam elogios e veem mostrar a sua solidariedade”, acrescenta a especialista.
“Todos estes movimentos contribuem para acabar com estereótipos, não podemos achar que não serve de nada ou que vai salvar o mundo. Vale a pena falar contra isto, vale a pena fazer o contraditório”, exorta.
Ataque às mulheres é “questão endémica”
Maria João Cunha fala das iniciativas de combate a todos estes estereótipos e que ainda estão longe de conseguir alcançar os efeitos pretendidos. “Os passos estão a ser dados e há muitas campanhas de sensibilização, mas não se mudam mentalidades de um dia para o outro, e há muitos fatores de resistência”, afirma a socióloga, que fala em “questão endémica que deve ser falada e desconstruída”.
“Desde há muito que a comissão para a Igualdade e Cidadania trabalha na desconstrução dos estereótipos de género, nomeadamente de ações de formação, informação e capacitação de públicos-alvo estratégicos e também através de campanhas nacionais, como a lançada no passado dia 8 de março, e que exatamente tinha por mote Somos todas muito mais que um corpo, alertando para o desequilíbrio sexista que existe na critica publica que é feita do corpo feminino face ao corpo masculino”, afirma fonte oficial daquele serviço da administração pública central do Estado que tem por missão principal a promoção da cidadania, igualdade e não discriminação e executora principal das políticas públicas nesses campos.
“Há passos dados, a nossa legislação é bastante protetora, mas a mentalidade muda de forma muito lenta: continuamos a ver, em termos de fluxos de imagens que circulam nos jornais, noticiários e publicidade, o estereótipo de mulher muito formatada nos padrões de beleza de um corpo magro. Enquanto isto continuar, é difícil rompermos de maneira mais relevante”, antecipa a investigadora.
Fonte oficial da CIG respalda a posição da socióloga e sublinha que, “efetivamente, as mulheres são muito mais escrutinadas socialmente na sua aparência do que os homens, e isto acontece independentemente da área profissional em causa, quer seja no mundo artístico, da comunicação social ou na politica”. E prossegue: “Nunca ouvimos ou lemos peças jornalísticas em que se ataque a “falta de beleza” de determinado homem que seja uma figura pública, pelo contrário é comum assistirmos ao julgamento da epiderme e dos quilos a mais de figuras públicas mulheres. É sobre este status quo de desigualdade e discriminação de género, infelizmente ainda dominante, que temos que todos e todas lutar, para que homens e mulheres sejam efetivamente iguais e possam ter as mesmas oportunidades.”
Idade e género acentuam discriminação laboral
E se a humilhação do corpo das mulheres é um dos temas que ressalta nesta polémica, ela não se fica por aqui. Segundo a socióloga, a desigualdade profissional, o futuro das mulheres exige olhos bem abertos e atenções redobradas.
“Há aqui uma outra questão que ressalta deste caso e que me preocupa: a idade. O envelhecimento no seu cruzamento entre idade é género. Um homem, após os 50 anos, continua a não ter o escrutínio corporal que as mulheres com a mesma idade têm”, refere Maria João Cunha. “Continuamos com esta intersecção entre a idade e o género que é muito mais pesada e negativa para as mulheres e que contribui para esta discriminação e objetificação”, justifica.
“Queremos uma sociedade mais inclusiva, igualitária, mais justa ou não?”, pergunta a investigadora e professora universitária, que refere que todos estes estigmas empurram para uma realidade permanente: “a discriminação laboral”. “Uma mulher para aparecer tem de cumprir, para além dos requisitos profisisonais, os físicos, quando isso, na verdade, não parece tão exigido aos homens. Verificamos grande assimetria”, conclui.