Publicidade Continue a leitura a seguir

Um teste à fé e aos limites de 11 mulheres

Ana Maria (Rita Blanco): "É uma mulher de Trás-os-Montes, que nasceu e foi criada lá, apesar de ter um percurso em que teve de sair, em busca de outras coisas, mas depois voltou. É uma mulher casada, com filhos, que é uma crente e para quem a peregrinação é um momento extraordinário. É um momento, provavelmente, de escape na vida dela, em que ela sai da rotina, até porque ela gosta imenso da Nossa Senhora de Fátima. E é uma mulher tesa, como, eu diria, têm de ser todas as mulheres de Trás-os-Montes, até porque não têm outra hipótese."
Maria do Céu (Anabela Moreira): "A Maria do Céu é uma mulher que se ressente facilmente, até porque o caminho é muito doloroso e ela sente-se, a partir de determinada altura, com pouco apoio e começa a criar suscetibilidades em tudo o que lhe está a acontecer. Ela acaba por servir de catalisador do próprio grupo, por não ser auto suficiente."
Nazaré (Íris Macedo): “É a menina mais novinha do grupo, tem 20 anos, mas até ela já tem motivo para ir a Fátima. É um caminho muito difícil para toda a gente e acho que sendo a mais novinha, ela não tem tanta aprendizagem de vida para lhe dar forças para fazer um caminho tão duro. Mas tem que as ter.”
Maria de Fátima (Cleia Almeida): “É uma rapariga muito extrovertida, muito divertida que não procura propriamente olhar pelos outros, mas sim mais para o seu umbigo e para os seus dilemas. Tem uma amizade maternal com a personagem Ana Maria [interpretada por Rita Blanco]. Ela está numa fase da vida em que pouco lhe importam os outros e em que está mais preocupada com a filha e com o marido, com a construção da família dela, que descambou bastante no último ano.”
Carla (Sara Norte): “Ela vai acompanhar a avó, interpretada pela Márcia Breia. Ela não é de Vinhais, é uma rapariga que teve um problema familiar, uma vida um pouco atribulada até que vai para casa da avó para se “tratar” como pessoa. Então ela faz as peregrinações, mas odeia, odeia a religião, as pessoas que se dizem beatas, odeia missas. Odeia tudo isso. E é engraçado porque é o balanço. Mas há uma mudança. Eu acho que a Carla ao ver aquelas mulheres, não se torna crente, mas começa a respeitar um bocadinho mais o esforço delas. E é uma personagem gira, é muito bruta, diz muitas asneiras, mas no fundo também é quem presta apoio quando vê aquelas pessoas completamente desesperadas.”
Rosário (Alexandra Rosa): “Ela é peregrina, só que tem como profissão ser enfermeira, não é uma enfermeira que vai ajudar o grupo. Embora para o grupo seja muito bom, porque vai haver muitos problemas de pés. Praticamente todos os dias, quando as outras já estão a descansar, a Rosário ainda trata dos pés das peregrinas todas. Ela é cunhada da Amparo [Ana Bustorff], que já vai há muitos anos. A Amparo está doente e há uma história por detrás: o sobrinho pediu-lhe que fosse acompanhar a mãe. Esse é um dos motivos. Depois ela tem um motivo secreto, que tem a ver com a saúde dela."
São (Teresa Tavares): “Ela é de Vinhais, mas esteve vários anos fora. Foi estudar, depois emigrou, depois teve de voltar. Portanto, ela é um bocadinho uma estrangeira naquela terra, porque saiu e voltou e a adaptação não é necessariamente fácil ou pacífica. É também uma coisa que se reflete na relação dela com o grupo. Ela observa muito, há muitas coisas que lhe fazem confusão, é muito crítica em relação a muitas coisas. De qualquer maneira vai fazer esta caminhada por causa de uma promessa muito importante, uma questão de vida ou de morte, por isso é-lhe impensável parar, aconteça o que acontecer.”
Amparo (Ana Bustorff): “É muito silenciosa, digamos que ela é uma 'não-existência', uma espécie de fantasma, de uma aparição que ali paira. A Amparo é um espírito que vai seguindo aquele caminho e ultrapassar aquelas montanhas é que o seu grande ato de fé. O lado sagrado, para ela, está na montanha, não está em Fátima. Mais do que a transcendência física, é a luta interior que é brutal.”
Nanda (Vera Barreto): “É uma personagem muito engraçada, dá para brincar com muitas coisas diferentes. Tanto é uma figura que se ri muito e de riso fácil, como de repente também é muito teimosa, determinada mas com mau feitio. Embora isso não esteja no filme, ela faz esta caminhada porque a mãe não pode fazer. Não é uma promessa dela, mas da mãe, que não está em condições físicas de fazer. Então vai ela, para que a promessa fique mesmo cumprida. Essa é a grande motivação dela para fazer a peregrinação. Não significa que não seja uma pessoa de fé – é católica –, mas a Nanda não se meteria numa coisa destas neste momento da sua vida se não fosse uma por uma pessoa muito importante.”

Publicidade Continue a leitura a seguir

Um grupo de 11 mulheres atravessa meio país com o objetivo de cumprir a promessa de chegar de Fátima. São quatrocentos quilómetros e nove dias de vivência em conjunto, em condições, muitas vezes, extremas e precárias, que põem à prova não só a resistência física destas mulheres, mas a sua fé, no divino e na humanidade.

É tudo isso que faz o novo filme de João Canijo, ‘Fátima’, com estreia esta quinta-feira, 27 de abril, nas salas de cinema nacionais. Feito com um elenco inteiramente feminino, o filme conta com as participações de Rita Blanco, Anabela Moreira, Teresa Tavares, Márcia Breia e Sara Norte, entre outras.

Para esta produção, as atrizes realizaram uma espécie de “estágio” em Vinhais, onde passaram alguns meses convivendo com a população local e aprendendo os seus ofícios e modos de vida para criarem as suas personagens. Também a peregrinação que é retratada no filme é real. As atrizes cumpriram, como qualquer peregrino, o percurso a pé de Trás-os-Montes até ao santuário, em diferente fases: a primeira em 2014, como preparação e com outros grupos de peregrinos, depois em 2015, já com as atrizes a formarem um grupo, e em 2016 para o filme.


Veja o trailer:

a carregar vídeo

 


Chegar a este ‘Fátima’ também foi uma ideia que conheceu diferentes mutações, como explicou ao Delas.pt o realizador, João Canijo:

“Primeiro era um filme sobre as relações humanas de um grupo de mulheres, obrigadas as estarem 24 horas sobre 24 horas, como uma prisão. Depois surgiu a ideia da peregrinação e aí surgiu-me uma ideia tão importante como a relação entre as mulheres, que é a relação da humanidade com a necessidade de fé. E em último sobre essas duas coisas. A ordem não sei bem qual é, porque elas confundem-se também e porque uma é paradoxal em relação à outra.”

Um filme de experiência feito
Não sendo um documentário, ‘Fátima’ apresenta-se como uma recriação real do percursos, dos sacrifícios e do ambiente que caracteriza um desafio deste tipo. De resto, o filme é o resultado das peregrinações experimentadas pelas atrizes, entre Trás-os-Montes e o santuário de Fátima. Foi daí que trouxeram o material humano para construírem as personagens e dar forma ao filme.

Cada uma fez a sua peregrinação e já tinha uma ideia de como é que se chamava, que idade é que teria, mas tínhamos de descobrir, durante aqueles dias a andar, quem é que éramos, se éramos casadas ou não, se tínhamos família ou não. Fomos descobrindo sozinhas durante o percurso”, refere Anabela Moreira, uma das atrizes sobre parte do processo de construção do filme.

A partir daí coube ao realizador escolher o mais conveniente para o guião e guiar as atrizes, sem as limitar a uma construção predefinida.

Foi introduzindo elementos, mas deixou que essa criação partisse de nós, que trouxemos todas as nossas experiências da peregrinação verdadeira para o processo de criação do filme. Depois o João [Canijo] decidia em que personagem cada uma dessas experiências se encaixava melhor”.

No seu caso, diz Anabela Moreira que interpreta Céu, a grande maioria das coisas que a sua personagem passa no filme, em termos de relações humanas, não se passaram consigo na peregrinação real que fez em 2014. Mas houve muita coisa que ficou.

A Céu começa a criar suscetibilidades em tudo o que lhe está a acontecer e isso partiu muito da minha experiência verdadeira quando fiz a peregrinação uns anos antes – em 2014, que fiz de Bragança a Fátima a pé. O sofrimento foi tão grande, tão grande, tão monstruoso que tudo mexia comigo. Por isso, tentei explorar esses sentimentos, que depois eram determinantes para a forma como se ia gerindo o percurso. Sendo que no percurso de Fátima passas por mil dias num só dia.”


Leia a entrevista com Rita Blanco sobre a sua participação no filme.


Dentro do grupo, é a personagem de Anabela Moreira a que mais questiona o sentido da peregrinação e o propósito da fé, lembrando aos restantes elementos a importância de valores como a solidariedade e a entreajuda.

“Isso também teve tudo a ver com a minha primeira experiência. O meu pânico era, se eu perdesse forças, e começasse a ficar para trás, não iam esperar por mim. Tive essa experiência num dos primeiros dias. E ficou-me gravado na memória, como uma coisa muito dolorosa. Então, cada vez que alguma pessoa ficava para trás eu sabia o que essa pessoa estava a passar.”

Apesar de ninguém abandonar completamente a pessoa que não consegue acompanhar o passo do grupo, “o ficar para trás”, como diz Anabela tem outro peso, que não apenas o do pânico.


“É o sentir que estás a prejudicar o grupo quando estão todas no caminho para ir ao encontro de uma coisa tão divina, tão perfeita.”


Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, na busca para alcançar esse encontro convive-se “diariamente com a imperfeição”. “E se não te consegues exprimir corres o risco de guardar ressentimentos”, acrescenta a atriz.

Um homem entre as mulheres
No seu trabalho, João Canijo tem privilegiado o trabalho com atrizes e ‘Fátima’ não é exceção, com um elenco quase exclusivamente feminino.

Para o realizador a razão é simples: “Cada vez mais acho as personagens femininas mais interessantes.” As do filme “Fátima” não são diferentes, mas não nos é dado a conhecer muito sobre elas ao longo do filme.

“Foi tudo feito para elas serem muito complexas, sabendo eu à partida – elas não – que essa complexidade ia ser intuída mais do que explicada. O facto de serem complexas e se sentirem complexas permite ao espectador imaginar o que quiser.”

O realizador dá, no entanto, algumas pistas, durante o filme, sobre as vidas das suas personagens, mas muito poucas sobre o que as leva a fazer a peregrinação.

Depois da exibição nas salas de cinema, “Fátima” dará origem a uma série televisiva, que será emitida na RTP, em data ainda a anunciar. Nessa altura, diz João Canijo, ficaremos a saber mais acerca destas mulheres.

Ao Delas.pt, as atrizes levantam um pouco o véu e, sem revelarem tudo, falam um pouco das suas personagens e dos motivos que as levam a fazer esta peregrinação.

Na fotogaleria, em cima, pode ficar a conhecer melhor Ana Maria, Maria do Céu, Nazaré, Carla, Maria de Fátima, Nanda, São e Rosário, nove das 11 mulheres do grupo que acompanhamos ao longo de mais de duas horas, na obra dirigida por João Canijo.

O elenco do filme, em Vinhais, janeiro de 2016. (Fotografia: Joana Linda)

Fátima’ vê-se como uma espécie de road movie, em que o espetador segue o caminho feito pelas atrizes e testemunha o seu sofrimento, as agruras e os conflitos, mas também os momentos de entreajuda, de superação e os progressos para alcançarem o objetivo: chegar ao santuário a tempo da procissão das velas, a 12 de maio.

Não há carros descapotáveis, nem cabelos ao vento ou carrinhas coloridas a defender o amor livre. As que há estão atafulhadas e sujas e o caminho faz-se a pé, com os pés rebentados cheios de bolha e as caras moídas da dor. O que falta em glamour, sobra em autenticidade, mais rural que urbana, mas de um Portugal em que todos, de uma maneira ou outra, se reconhecem.