Assédio sexual: Um beijo não consentido vale menos do que um apalpão não autorizado?

beijo e apalpão
[Fotografia: Montagem/Captura de ecrã]

Um presidente da Federação Espanhola de Futebol beija na boca, de forma não consentida, uma jogadora que acaba de conquistar o título de campeã do mundo. Sociedade espanhola divide-se ao ver este momento em direto mas, três semanas, já neste domingo, 10 de setembro, depois do incidente e de pressão nacional e internacional, Luís Rubiales comunica a demissão. Um cidadão caminha na rua e ‘apalpa’ o rabo da repórter do canal Cuatro Isa Balado quando esta estava em direto e, pouco depois, chegam as imagens da polícia a deter o indivíduo.

As primeiras perguntas que ecoam são, na verdade, provocações: Um apalpão não autorizado é mais grave que um beijo não consentido? Há níveis para categorizar o tipo de agressão sexual e a atuação e penas correspondentes?

As respostas a estas questões são óbvias: ‘Não!’ Afinal, beijos e apalpões não consentidos constituem, aliás, o mesmo tipo de crime e, nestes dois casos, dispõem de provas da mesma natureza: imagens em direto.

Mas, então, porquê a diferença de tratamento? “Um e outro casos são importunação sexual, não há distinção”, afirma a jurista e coordenadora do FEM – Feministas Em Movimento, Elisabete Brasil. “O não consentimento é grave e comum a ambos. A objetivação, seja feita por quem for, é importunação sexual e é sempre grave”, acrescenta o psicólogo e assessor técnico da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Daniel Cotrim.

Se assim é, afinal, o que justifica as diferentes formas de atuação? Estar em clima de festa com a vitória da seleção? Ser mais ou menos próximo?

“Se calhar, estamos a falar de sistemas e de poder”, diz o psicólogo da APAV, que especifica: “Por um lado temos o futebol, o sistema patriarcal, machista, misógino, onde é mais natural colocar em causa as palavras das mulheres, elas estão mais desprotegidas, elas são uma novidade neste sistema. De um lado, temos um presidente de um organismo. Do outro, temos um transeunte. É quase como se a lei tivesse dois pesos e duas medidas”, aponta Cotrim.

A coordenadora do FEM crê que “este segundo caso [o do ‘apalpão’] está influenciado pelo movimento e visibilidade que o primeiro teve na sociedade”. Ambos provam que “o assédio sexual existe em vários contextos da vida laboral, pessoal e institucional e ele não é valorizado”.

No caso de Rubiales “temos uma visibilidade que o caso anónimo não teria, misturam-se várias instâncias de poder. Ela é a jogadora que é, ele está no poder em que ela se move e imagino que ela também tenha recebido pressões de dentro da estrutura”, contextualiza Elisabete Brasil.

Porém, a coordenadora vinca que, no caso do apalpão, houve um detalhe da máxima importância: “a não naturalização do acto por parte do pivô”, quando este pergunta à jornalista se ela tinha sido mesmo tocada por aquele homem, o que ela confirmou. “Houve um diálogo entre o pivô em estúdio e a jornalista, ele não normalizou. Há logo um reconhecimento de outrem que faz com que a vítima se sinta suportada e valorizada, há uma reação”, afirma.

“Quando sentimos, como vítimas, que temos apoio e estamos protegidas, tal reforça essa posição e indica segurança perante aquele primeiro pensamento que as vítimas têm e que é o de que, afinal, a minha primeira sensação de desconforto não estava errada”.

O canal de televisão terá feito queixa imediata à polícia para o caso do apalpão à repórter. No caso de Rubiales, eram, a 4 de setembro, 15 as queixas ao Conselho Superior do Desporto (CDS) a condenar a atitude do presidente, então suspenso pela FIFA, mas ainda longe de apresentar a sua demissão. Desde 8 de setembro e após queixa formal da jogadora Jenni Hermoso, o Ministério Público espanhol apresentou uma denúncia contra Luis Rubiales no Tribunal Nacional, solicitando uma investigação pelos crimes de agressão sexual e coerção.

Não é sabido, até ao momento, se a repórter Isa Balado já apresentou queixa contra o transeunte que a apalpou.

Os efeitos psicológicos de três semanas de espera
ou de uma detenção imediata

“Três semanas é tempo de mais na cabeça de uma vítima”, diz a jurista Elisabete Brasil referindo-se ao caso que envolveu Jenni Hermoso e Luís Rubiales. “Quando se falava dele, falava-se também dela. Imagino a angústia que terá vivido estas semanas e também ao vê-lo dizer o ‘não saio’, a culpabilizar a sociedade, a fazer aquele jogo das falsas feministas. Isto mostra a naturalização, a invisibilidade da violência sexual contra as mulheres no espaço público e faz com que o alegado agressor sinta que não fez nada de mal, que é tudo um exagero e fora de caixa, como se houvesse uma aceitação dessa violência que é, aliás, normal nas sociedades patriarcais, machistas, em que o corpo das mulheres é deles, é da sociedade”, condena a coordenadora do FEM.

Para o psicólogo Daniel Cotrim, “o primeiro grande sentimento é o de injustiça e de achar claramente que aquilo que ela diz não é considerado, é tomado como não verdade, em que as vítimas são levadas a acreditar, na maioria das vezes, que ninguém vai acreditar nelas”. Segue-se depois a “culpabilidade”, a de que “se calhar, não interpretaram bem as coisas”, acrescenta. Estas três semanas, e é importante referir isto, levam “outras mulheres e outros homens a terem um sentimento de dúvida e de impunidade”.

Por outro lado, realça Cotrim, a detenção quase imediata carrega outro tipo de mensagem pública: “a de confiança no sistema, ágil e eficiente, o que é fundamental”.

Mas o caso não termina aqui. “Depois, é preciso perceber se a fase seguinte funciona da forma certa, certificando-se de que as vítimas têm apoio e apoio especializado para este tipo de questões, têm respostas para as suas necessidades e se se sentem ressarcidas e ouvidas”, alerta o psicólogo.

E a justiça?

Se Daniel Cotrim teme um sistema jurídico enviesado, Elisabete Brasil lembra que a justiça, ao contrário do que se pensa, não é exatamente igual para todos, como deveria ser: depende do dinheiro que se dispõe para meios para queixas e recursos em tribunais.

“Não tem de haver espaço para dúvida. A justiça tem de investigar e, quando acha que há motivos para tal, tem de julgar e ser eficiente”, afirma o psicólogo da APAV, deixando um alerta: “O sistema judicial também está enviesado, também ele representa e mimetiza os preconceitos, crenças gerais, é preciso que a própria justiça faça um olhar para dentro e reflita sobre estas questões”, pede Cotrim.

A jurista considera que, em ambos casos, “a decisão final terá de ser, não exatamente igual, mas semelhante”. “A magistratura que temos, que acho que é boa, vai chegar à mesma conclusão”, afirma Elisabete Brasil. Porém, prossegue, ”o que vai diferir são os meios que cada um vai ter ao dispor para reagir face a uma queixa e a uma decisão judicial. Quem tem mais dinheiro dispõe de mais meios de defesa”.

Para já, as mensagens que saem destes dois casos ocorridos na sociedade espanhola devem fazer pensar todos, e em Portugal também. “Acredito que muita gente tenha pensado no assédio sexual e que este caso tenha efeito com que muitas pessoas olhassem com mais detalhe para estas matérias”, crê Elisabete Brasil. Para a jurista, “a própria estrutura desportiva também aprende”. “Nem todas as empresas têm códigos de conduta e ética para o assédio, é algo que estão a construir. Abriu-se aqui um espaço de discussão que, tal foi a visibilidade, faz com que muita gente tenha pensado sobre esta questão”, conclui.