Porque é que as mulheres quando vencem ‘não conseguem’ celebrar?

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[Fotografia:FRANCK FIFE / JIJI PRESS / AFP]

O relógio tocava quase a uma da tarde em Portugal quando, a 20 de agosto, a seleção espanhola se sagrava campeã mundial de futebol feminino em 2023, com um golo de Olga Carmona, aos 29 minutos, em Sidney, na Austrália.

Agora, olhando para o filme que as imagens podem contar, às 14.12 horas desse mesmo dia o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol, Luís Rubiales, cumprimentava as jogadoras – ao lado da rainha Letizia e da Infanta Sofia.

[Fotografia: FRANCK FIFE / AFP]
Seguidamente, foi visto a segurar a cara à jogadora Jenni Hermoso e a dar-lhe um beijo curto na boca.

[Fotografia: captura de ecrã]
Cinco minutos depois, às 14.17 horas, as atletas exibiam o troféu.

Jennifer Hermoso, Alexia Putellas e Irene Paredes [Fotografia: FRANCK FIFE / JIJI PRESS / AFP]

Esta terá sido a última vez que apenas se falou da merecida festa e da conquista histórica que estas mulheres alcançaram no futebol feminino mundial. Depois, um dirigente federativo num beijo “não consentido” à futebolista Jenni Hermoso virou o jogo e transformou a vitória num caso de assédio, uma vez que a atleta afirmou e reiterou que nunca tinha autorizado aquele beijo, mesmo em clima de festa.

Mais de uma semana depois, o tema prossegue sob polémica na Europa e no mundo: primeiro porque, diante do episódio, Rubiales não se demite, depois porque é apoiado pela Federação espanhola (que se opõe às atletas) – com direito a filme fotográfico no qual não consta o beijo transmitido em direto mundial -, num momento seguinte porque é suspenso pela FIFA e esta, segunda-feira, 28 de agosto, com novo contra-ataque da federação junto da UEFA.

E elas? As que venceram? As atletas indignaram-se, juntaram-se, ameaçaram pôr as suas carreiras em suspenso caso Luís Rubiales não saísse e veem ser posta em causa, mais de uma semana depois, a palavra delas contra a dele. Afinal, mesmo quando ganham, as mulheres não têm direito a vencer, porquê?

“Não basta responsabilizar o agressor, mas também quem nada fez ou faz”, diz Ana Bispo Ramires

“Ao longo do anos, temos visto vários países a tentarem lutar por mais do que apenas a vitória dentro do campo. A realidade do futebol feminino ainda são as lutas reais e diárias para encontrar o nosso espaço”, diz Raquel Sampaio. A agente de atletas femininas como a capitã da seleção portuguesa de futebol Dolores Silva e, entre outras, as jogadoras Fátima Pinto, Inês Pereira e Rute Costa, que estiveram neste Mundial que decorreu na Austrália e Nova Zelândia, teme que esta realidade não chegue ao fim tão cedo. “Elas estão ali para jogar futebol, e não deveriam estar a lidar com mais nada, mas ainda existem preocupações maiores do que treinar, jogar futebol e ganhar títulos. Temos muitas batalhas e conquistas dentro e fora de campo que temos travado e vamos ter de continuar a travar nos próximos anos”, refere Sampaio.

Para Ana Bispo Ramires, falamos de casos que vão decididamente caminhar para prolongamentos. “O futebol feminino e em geral acabou de dar um passo muito maior do que esta vitória. Era importante puxar este tema em Espanha para que as miúdas tivessem o espaço que é delas, e demora uma vida a conquistar”, afirma a psicóloga clínica com mais de duas décadas no desporto.

Uma vitória com sabor a beijo não autorizado e lutas de poder que, para Ana Bispo Ramires, traz uma nova realidade: “O futebol não vai ser mais o mesmo, porque vemos também os atletas e treinadores masculinos associarem-se a este movimento, ao lado delas, como por exemplo o Iniesta [médio histórico do Barcelona] ou o Simeone [treinador do Atlético Madrid]. Esta conquista trouxe mais do que esta vitória para a sociedade civil”.

Mais do que olhar para o autor desta atitude, caminha-se para a fase seguinte. “Já há uma questão muito importante e que envolve todos: como é que nós responsabilizamos as pessoas que assistem a isto e não fazem nada”, antecipa a psicóloga do desporto. “Para isto ter chegado a este ponto é porque, durante anos, foram observadas situações e havia conhecimento delas, mas sobre as quais nada foi feito. Muitas pessoas sabiam e não denunciaram. Hoje em dia, internacionalmente, estamos a evoluir e não basta responsabilizar o agressor, mas também quem nada fez ou faz para mudar”, afirma Ana Bispo Ramires.

Raquel Sampaio concorda. “Não será apenas uma vitória se Rubiales cair, terá de acontecer com todas as maçãs podres que estão nas estruturas”. E gostava de apontar uma data: o próximo mês. ”Vai haver a convocatória para a Liga das Nações e espero que, para elas, esta questão esteja finalizada. É uma nova competição e elas querem ver as coisas resolvidas o mais depressa possível”, refere a agente.

E os efeitos deste episódio: stress, ansiedade e medo

“Obviamente que este caso tem de lhes causar ansiedade e stress. Elas deveriam estar só a olhar para o seu trabalho e estão focadas em mudar as condições de trabalho. Sabemos que só quando estamos focados conseguimos o nosso melhor rendimento”, analisa Raquel Sampaio. A agente desportiva crê que o clima seja “de revolta por elas não poderem fazer o que seria normal, estarem concentradas em campo”.

Uma situação que, prossegue a especialista, “cria um certo medo de lutar pelos direitos e obriga-as a terem de escolher as suas batalhas, estas lutas têm repercussões para elas”.

Porém, considera que “o paradigma também está a mudar, estas situações que têm acontecido noutros países acaba por mostrar o poder que elas podem ter em situações como estas, a de não se calarem. Acredito que no futuro mais vão falar e mais vão lutar pelos seus direitos”.

Ana Bispo Ramires defende que os efeitos vão depender das histórias individuais de cada atleta. “Depende do historial individual. Se a pessoa já tiver passado por uma situação como esta, era importante estar a ser acompanhada por uma especialista em trauma porque pode de vir a desenvolver stress pós-traumático. Contudo, quando existem situações disruptivas como esta e são transformadas em algo muito bom, esse mesmo movimento pode ajudar a curar este processo”, afirma a psicóloga clínica, estabelecendo uma comparação. “Não aconteceu [não houve consequências] na invasão da Academia de Alcochete. Foi um episódio horrível, super-traumático, e se se for observar o que aconteceu após esse momento com alguns dos atletas que lá estavam – e eu escrevi sobre isso na altura -, é que alguns deles não conseguiram alcançar os seus objetivos por questões de stress pós-traumático.”

Porém, a especialista crê que agora será diferente. “Esta questão [em Espanha] não vai ficar por aqui, os espanhóis têm mais sangue na guelra. Houve manifestação social e política, com ministros a posicionarem-se, e obviamente que isto lhes dá muita força para avançarem, dando-lhes segurança. E o problema das vítimas emerge quando que não se consegue trabalhar precisamente o contexto de segurança”.

“Enquanto as pessoas com determinados valores que não são os corretos para o futebol feminino estiverem em cargos de poder, as batalhas vão continuar a existir. Temos de colocar mais mulheres – obviamente lutam pelos direitos – em cargos de poder e de decisão para termos cada vez mais voz”, pede Raquel Sampaio, que fala de “uma cultura muito machista, que acha que tem um poder sobre a mulher muito grande”. “Enquanto não reivindicarmos, vamos assistir, nos próximos anos, a muitas situações destas, elas [as atletas] começam a ter noção da voz delas. O futebol feminino está a ter uma grande visibilidade e elas também o percebem. Vamos continuar a ter estas guerras, vão ser cada vez menos, mas ainda vão durar alguns anos”.

Ana Bispo Ramires deixa uma recomendação. “Denúncia sem acompanhamento psicológico pode ser retraumatização”. E especifica: “As pessoas devem conhecer muito bem quais os canais de denúncia e como as vítimas podem ser protegidas. Quando há uma denúncia, o caso torna-se, a partir de determinado ponto, público. Precisamos de saber como conseguimos proteger as pessoas, esse processo tem de ser claríssimo”.

As causas das mulheres que o futebol feminino tem trazido

No Mundial Feminino de Futebol que decorreu em França, em 2019, a capitã da seleção feminina norte-americana, Megan Rapinoe, deixou bem claro, ainda antes do jogo que as sagraria novamente campeãs do mundo, não iriam à Casa Branca, com Donald Trump, mesmo que vencessem. E as razões eram várias e iam muito para lá da quatro linhas.

A atleta representava e abraçava causas como a luta pela igualdade salarial entre atletas femininas e masculinos, Rapinoe era o rosto dos direitos LGBTQ+ e trans, apoiante clara do movimento Black Lives Matter e ajoelhou-se durante o hino nacional em solidariedade a Colin Kapernick na luta contra a violência policial racista.

Ana Bispo Ramires distingue este caso do que o que agora sucede. “São fenómenos diferentes: Megan usou isso como estratégia, no caso de Espanha elas foram empurradas para esta circunstância”. E especifica: “Muito frequentemente, as pessoas aproveitam, e bem, estes momentos para trazer visibilidade a questões menos faladas e fazem-no quando o mundo está a olhar para elas. Rapinoe tinha as luzes sobre ela, Simone Biles marcou com as questões de saúde mental, e agora o canoísta Fernando Pimenta fez o mesmo ao trazer a questão de o treinador dele nunca ter sido condecorado por nada, e sabemos o quão importante é o papel do treinador nestas conquistas. Os grandes palcos acabam por trazer visibilidade a temas que não a têm.”

A psicóloga clínica acredita, por isso, na dupla capacidade reformadora do futebol. “Estou há 25 anos no desporto, na psicologia clínica e o que me fez vir para esta área foi perceber que o desporto tem duas vantagens gigantes: é um laboratório humano de transformação pessoal e de mudança social, com a sociedade geral a poder aprender imenso com o que se passa no desporto”, vaticina.