A chamada de atenção chega de quem está a apoiar empresas em processos de recrutamento e seleção de recursos humanos. Se o teletrabalho ameaça empurrar muitas mulheres para o limite da exaustão por terem de conciliar a vida profissional, pessoal, doméstica e maternal devido às contingências impostas pela pandemia provocada pelo novo Coronavírus, a dificuldade em cumprir trabalho presencial já está a afetar seriamente o acesso ao mercado laboral por parte do sexo feminino.
“Há uma fragilização das relações laborais quer para com as pessoas que estavam a prazo, quer no caso das mulheres”, começa por explicar Catarina Cardoso. As 45 anos, esta gestora de Recursos Humanos e consultora em processos de gestão, recrutamento e seleção de equipas sublinha que o vírus vai fazer ”retroceder algumas décadas para as mulheres e no que diz respeito ao mercado de trabalho”.
“Sim, já temos casos de empresas que nos dizem que não querem contratar mulheres porque veem que elas estão a ficar mais ausentes dos seus locais de trabalho”, refere a especialista, vincando que tal sucede mais na “indústria”, “talvez menos os serviços”, e em setores “onde o teletrabalho não é possível”. A especialista assegura que já foi confrontada diretamente com esta situação “há cerca de um mês, quando já se estava em quarentena”.
Catarina Cardoso diz mesmo ao Delas.pt que a situação arrisca a ficar ainda pior: “Temo que as empresas, a médio ou longo prazo, tenham reticência na contratação de mulheres em novas admissões e nos postos de trabalho femininos.”
Mais: uma eventual nova vaga de Covid-19 poderá ser decisiva neste afastamento. “Se se perspetivar que o primeiro trimestre do próximo ano letivo comece num sistema misto – com os pais a terem de permanecer, em parte, em casa e possivelmente num período temporal de mais de seis meses – tal vai fragilizar muito as mulheres”.
“Mesmo que as pessoas não estivessem em lay-off, o que sucedeu é que, com a suspensão das aulas presenciais, os filhos passaram a ficar muito mais com as mães, que começaram a ter de pedir licenças para ficar com os filhos em casa até, pelo menos, ao final do ano letivo. Claro que as mulheres assumiram em grande maioria esse papel em detrimento dos homens”, contextualiza a gestora de Recursos Humanos e responsável da empresa Melhoria Consultoria. E mesmo que os pais assumam esse papel, Catarina Cardoso também lembra que “as mulheres renovam o pedido de assistência, mas os homens tendencialmente não”.
Tratando-se de uma questão de mentalidade, como levar empresas a promover que os homens tomem a dianteira familiar ou mesmo que, eles próprios, o façam? “É difícil levá-los a assumir estas matérias porque eles não estão tão sensíveis. É quase sempre a mulher – não é sempre – que fica a cuidar mais dos filhos, mais em casa, o que acaba por pôr mais em causa a situação do sexo feminino no trabalho”, analisa.
Recorde-se que os pedidos de apoio da Segurança Social para pais com filhos menores de 12 anos devido ao encerramento das escolas têm partido, na sua maioria, de trabalhadores por conta de outrem, com 149 796 em março e 87 949 em abril, segundo dados divulgados a 15 de maio. No que diz respeito aos trabalhadores independentes, o Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social diz que foram entregues 20 120 em março e 8 058 no mês passado. Para os trabalhadores domésticos, os números também apontam uma queda entre os dois meses: de 2358 para 1783. O Delas.pt aguarda detalhes sobre os dados apresentados por género.
Na perspetiva da economia na ótica do empregador, Catarina Cardoso lembra também que “empresas precisam de pessoas para trabalhar”, sendo que, “no setor industrial, é muito difícil porque as pessoas não estão muito motivadas para esses tipos de trabalho sujos, com ambientes de trabalho mais ruidosos, horários de trabalho noturnos ou por turnos”. Ora, prossegue a gestora de Recursos Humanos, “se já é complicado, quanto mais nestas situações em que são necessários serem feitos os planeamentos a médio ou longo prazo”.
Como resolver? Catarina Cardoso lembra que a lei é clara na condenação da discriminação. Contudo, tal não impede que ela tenha lugar no mercado de trabalho. “A lei proíbe a discriminação, mas na prática já esta a acontecer”.
A especialista considera que, “neste momento, não há mecanismos” que impeçam essa diferença de tratamento até porque “o mercado é livre, as empresas recrutam quem querem”. Como consultora, diz que a sua margem para intervir decorre apenas da sugestão: “Posso sempre sugerir, mas a decisão final é sempre do empregador. Tanto entrevisto homens como mulheres, mas a última palavra é deles”. “A Inspeção do Trabalho sempre teve um papel importante nesta questão da defesa da igualdade, mas é obvio que é sempre difícil de provar porque facilmente se conseguem arranjar outros argumentos para a seleção de pessoas que foi feita”.
A matéria passa, por isso, pela mudança da “questão cultural e de mentalidade” porque, considera Catarina Cardoso, “se calhar, noutros países mais desenvolvidos isto não aconteceria. “Mas também há se começa a ver nas camadas mais jovens outra atitude e outro papel dos homens”, ressalva.